Que me perdoem os caçadores de clichês e os inimigos do óbvio, que me desculpem os combatentes do medíocre lugar comum e me amaldiçoem os bravos defensores da invenção, mas é impossível não falar no último texto do ano sobre o ano que se passou. Impossível! Ainda mais quando o ano em questão é esse tal de 2019: ano difícil, terrível, com o peso de uma centena de toneladas e a exata duração de um século.
Com o olho cravado no futuro, cavalgando no lombo do ano que se achega pouco a pouco, é preciso levar adiante todo o horror do ano que passa no calendário, mesmo a contragosto, para que não sejamos obrigados a tomar partido e decisões definitivas como fizemos, a cometer erros imperdoáveis para depois nos arrependermos, e a rebolar, e chacoalhar, e balançar feito carga pesada em cima de burro cansado como temos sido obrigados a fazer diariamente.
Por mais doloroso que seja, é preciso lembrar que mesmo depois dos fogos estourados ainda viveremos num país despedaçado, incendiado, e que o fogo que se alastra pela nação tem como objetivo torrar a tudo e a todos em nome de um projeto retrógrado e inconsequente que se impõe através da força.
Por mais doloroso que seja, é preciso lembrar que mesmo depois dos fogos estourados ainda viveremos num país despedaçado, incendiado, e que o fogo que se alastra pela nação tem como objetivo torrar a tudo e a todos em nome de um projeto retrógrado e inconsequente que se impõe através da força. É preciso lembrar. Saber que em termos de cultura nada muda. Continuaremos submetidos a homens promíscuos e covardes que tem como único objetivo nos destruir, sistematicamente, através da defesa do horror. Continuaremos reféns, é bem verdade, afinal a liberdade não se conquista com o romper das novas possibilidades dos dias em branco que se anunciam logo ali. Por isso é preciso continuar alerta.
Censura, violência, desonestidade, desfaçatez, cretinice, intolerância, obscurantismo; essas palavras continuarão a pautar a agenda cultural do país e continuarão a tirar o sono de artistas e público. O sossego do recesso não pode fazer esquecer o absurdo dos excessos, como não deve nos deixar relaxar mesmo que seja preciso, mesmo que seja o esperado. Não se esqueçam: a escuridão e o silêncio servem aos covardes tanto quanto servem aos românticos. Mudamos de ano mas não mudamos de plano: lutaremos hoje, amanhã e sempre pelo direito de produzir e prestigiar obras livres, de defender artistas e pensadores que compreendem e colaboram com seu tempo: denunciando, exaltando e exercendo a liberdade, pressuposto inegociável e mãe de todas as artes.
É tempo de pôr ordem na casa, sim: reorganizar a mobília, limpar a poeira da sala, dos sonhos e da existência, jogar na lata do lixo velhos fantasmas que insistem em sair debaixo do tapete. É tempo de não guardar mais medo, e sim cultivar a esperança e, acima de tudo, é tempo de despedidas. Vá e vá em paz, 2019; mas leve consigo toda a poeira que arremessou sem dó no olho e na vida da gente. Até nunca mais!