Não é a primeira vez, infelizmente, que a coluna “Em Cena” se vê diante de um episódio de censura envolvendo um espetáculo. Esse espaço voltado ao teatro, à compreensão e análise de sua prática e teoria, nem sempre pode se dar ao luxo de tratar somente da beleza dessa arte. Já há algum tempo, resolveu-se por aqui, por princípio e devoção, que a defesa da liberdade é também a defesa de todas as artes.
Somos feito de sangue e de luta, sabemos que muitas vezes é necessário reafirmar crenças e que só através do combate ao pensamento retrógrado e a defesa inconsequente do livre direito à expressão é que conseguiremos nos reinventar e libertar em direção a um mundo onde todos sejamos iguais. Em se tratando de nós, humanos, talvez tenhamos de admitir que mesmo com todo avanço tecnológico, e as grandes cruzadas em busca do futuro, a nossa maior conquista é a solidariedade. Por isso, como humanos que somos, não podemos admitir que a arte seja ainda, e no Brasil cada vez mais, vítima de proibições, censuras ou de qualquer outro tipo de violência. Enquanto houver fôlego gritaremos a plenos pulmões contra quem tentar calar artistas, mutilar obras e escurecer o palco. Como se diz em New Babylon: la poésie faite par tous et non par un!
Essa semana, o mundo das artes tupiniquim foi surpreendido com o cancelamento da peça O evangelho segundo Jesus, rainha do céu. A montagem estava em cartaz em Jundiaí, no interior de São Paulo, no Serviço Social do Comércio (Sesc), quando sua exibição foi interrompida pela 1ª Vara Cível da Comarca da cidade. A medida foi tomada em caráter de urgência pelo juiz Luiz Antonio de Campos Júnior, após pedido impetrado pela advogada Virginia Bossonaro Rampin Paiva, que deu entrada ao processo contra o Sesc. Em decisão final, o juiz proibiu a apresentação do espetáculo no dia 15 de setembro e proibiu o Sesc de colocá-la em cena em qualquer outra data, sob pena de multa diária de R$ 1 mil reais.
O papel do artista, e de sua obra, é o de provocar um novo tipo de raciocínio, tirar as cascas podres das cucas alheias e promover não a ordem e sim o delírio.
Segundo o meritíssimo, “As circunstâncias jurídicas alegadas (…) corroboram o fato de ser a peça em epígrafe atentatória à dignidade da fé cristã, na qual Jesus Cristo não é uma imagem e muito menos um objeto de adoração apenas, mas sim o filho de Deus. (…) Em se permitindo uma peça em que este homem sagrado seja encenado como um travesti, a toda evidência, caracteriza-se ofensa a um sem número de pessoas.” Isso na mesma época em que terreiros são brutalmente atacados, pais e mães de santo expulsos de suas comunidades e praticantes de religiões de matrizes africanas são perseguidos publica e violentamente sem qualquer tipo de defesa, nem mesmo judicial, já que os praticantes desses crimes permanecem soltos por aí pregando a barbárie em nome de um deus totalitário que só existem em suas cabeças empoeiradas. De qualquer forma, em ambos os casos há a intolerância por trás dos atos e em nenhum deles a defesa do sagrado ou algo do tipo.
A diretora da peça, Natalia Mallo, logo se pronunciou em suas redes sociais e disse que apesar de ter causado polêmica desde sua estreia, em agosto de 2016 no Festival Internacional de Londrina, essa era a primeira vez em que a peça era proibida e que a liminar concedida pelo magistrado é [highlight color=”yellow”]”um tratado de fundamentalismo e preconceito”[/highlight]. A atriz Renata Carvalho, que vive o personagem centro do imbróglio, manteve o mesmo tom de resistência da diretora e afirmou que a proibição jamais os calaria. Renata, que também é fundadora do Coletivo T, formado por artistas trans, afirmou que a atitude não a calaria. “Existiremos e lutaremos. Não vamos nos calar. Precisamos acabar com a transfobia. A gente acredita que, por meio da arte, com certeza não seremos mais espancados até a morte”.
A proibição, como era de se esperar, gerou interesse e apoio à encenação. No sábado (16), após liberação da peça, centenas de pessoas compareceram ao Sesc, e [highlight color=”yellow”]a atriz Renata Carvalho foi ovacionada pelo público ao fim do espetáculo.[/highlight]
O episódio, gravíssimo, é mais uma amostra da cruzada moralista que se anuncia no Brasil e no mundo. São inúmeros os casos de opressão e censura nos últimos tempos: atores presos em cena, grupos proibidos de iniciar seus espetáculos, artistas apanhando de populares, como no episódio com os atores de Roda Viva em plena ditadura. É horror que não tem fim!
Retornamos em ritmo acelerado a um passado negro que jamais deveríamos ter esquecido, afinal suas marcas ainda são profundas na pele de todo país e sangram a cada novo golpe do cassetete, e enlouquecem a cada novo eletrochoque na têmpora e doem, doem muito, a cada nova investida do carrasco, dessa vez vestido de toga. Se há ou não um estado de exceção no Brasil, cabe a cada um pensar e julgar por si. Tenho a certeza de que vivo em estado permanente de sítio e que a já crescente, e violenta, ascensão do pensamento conservador e intolerante no país é um fato. Um lamentável fato que, mais do que ser compreendido, precisa ser combatido, destroçado, e para tanto precisamos justamente das artes, meio supremo de reinvenção da vida e da sensibilidade.
O caso da peça O evangelho segundo Jesus, rainha do céu é um exemplo disso. Somos um dos países que mais assassina homossexuais, somos uma nação que ainda não admite a liberdade do outro e que não compreende, e ainda por cima pune, a discussão e a defesa da diversidade de expressão de gênero, por exemplo. Difícil entender como, em pleno 2017, alguns temas ainda sejam tabus e, como tal, permaneçam encarcerados no fundo da gaveta da pátria. Intocados, jamais transfigurarão-se em totem e acabarão por nos atormentar eternamente. Por isso, é preciso levar ao palco, e às telas e aos museus e a todos os cantos, tudo aquilo que possa chocar e encantar, afinal esse é o papel da arte.
Sabemos que qualidade tem a ver com técnica e não temática, e que polêmica alguma deve justificar a sua falta. No entanto, o artista, enquanto criador, [highlight color=”yellow”]tem liberdade absoluta e intocável e essa liberdade não admite concessão. Só se é livre se o for por inteiro.[/highlight] Nós, enquanto artistas ou cidadãos, não podemos admitir, muito menos nos omitir, diante desse tipo de violência.
Aos artistas cabe a feitura de obras que vão na contra mão da alienação, que proponham o debate e transformem os espectadores. Ao artista cabe a defesa da liberdade, inclusive a do público, e a certeza de que não é um profeta em busca de “iluminar” a platéia com suas verdades absolutas, nunca. [highlight color=”yellow”]O papel do artista, e de sua obra, é o de provocar um novo tipo de raciocínio[/highlight], tirar as cascas podres das cucas alheias e promover não a ordem e sim o delírio, afinal, como disse Proudhon, para que possamos permanecer livres, para não estarmos sujeito a nenhuma lei, para que possamos nos governar é preciso reconstruirmos o edifício da sociedade.
Entre polêmicas, discussões e proibições, foi isso o que a espetáculo O evangelho segundo Jesus, rainha do céu fez: colocou um tijolinho, pequenino, nesse novo edifício que esperamos construir. Que o episódio sirva para que todos juntos, e livres, possamos colocar tantos mais e ver surgir no horizonte um mundo onde nenhum homem governe a outro e o proíba do que quer que seja.