Dedicar-se aos ofícios artísticos nunca foi tarefa fácil no Brasil. O artista duela diariamente com as impossibilidades e as imposições de um mundo que esqueceu o significado do sonho e da beleza. Nesse mundo prático, as artes tornaram-se, em sua maioria, entretenimento apenas e, como tudo dentro da lógica do mercado, são medidas por cifras, demonstradas por balanços financeiros e exaltadas pela fartura do borderô. É notória a crueldade desse sistema e todos aceitamos com naturalidade os absurdos e horrores justificados através das tais “exigências” desse mercado. Ao valorizar a grana em detrimento do homem acabamos por nos tornar menos humanos e caminhamos a passos largos para o dia em que não haverá mais diferença entre um trabalhador e uma máquina, a não ser os custos a serem considerados.
Um dos maiores empecilhos ao mercado de trabalho é o tempo. O dito popular nos ensina desde cedo que quem o poupa acaba também por poupar dinheiro, por isso a busca incessante por agilizar produções, aumentar a jornada de trabalho e diminuir direitos. A mecanização surge para suprir essas necessidades e, acreditem, sempre foi compreendida como uma saída interessante tanto ao trabalhador quanto ao patrão. Herbert Marcuse, por exemplo, acreditava que as máquinas possibilitariam ao homem tempo livre. Tempo esse que, de acordo com o filósofo alemão, seria dedicado ao verdadeiro exercício da vida: a criação. Bonito, não? As máquinas servindo ao homem enquanto instrumento de trabalho e esse, livre dessas obrigações, dedicando seu tempo à criação e ao delírio.
A comparação entre o corpo do artista dos palcos e uma máquina não é incomum e já foi utilizada por diversos teóricos.
Infelizmente, a previsão de Marcuse não se concretizou e acabou virando apenas uma nota na marcha das utopias de nosso tempo, ao lado de muitos sonhos que rasgaram o céu em 68. A ameaça da máquina hoje em dia é um fato. O patrão exige que homens se desdobrem através da constante ameaça de serem substituídos por eficiente braços metálicos. Ao invés de tempo, a máquina trouxe ao mercado de trabalho a paranóia e o medo, além, é claro, da revolta. O corpo contra “a máquina”, seja ela a máquina política, cultural, educacional ou a famosa máquina dos grandes negócios.
Essa máquina que mudou o mundo e transformou – ou escravizou ? – o homem não deixou de lado as artes. Todas elas foram balançadas de alguma maneira. No caso do teatro, por exemplo, [highlight color=”yellow”]é comum ouvir hoje em dia a respeito de uma máquina corporal do ator.[/highlight] Mas o ator compreendido enquanto máquina, ainda tem o direito de pensar ou passa a ser um mero instrumento?
O corpo do ator: máquina cênica
Ao ator, assim como a muitos outros artistas, o corpo é a ferramenta principal de trabalho. Tal qual uma máquina, requer cuidados e “manutenções” na busca pelo desempenho perfeito. De exercícios específicos a cuidados gerais, de noções básicas a estudos avançados sobre o tema, [highlight color=”yellow”]a preocupação com o corpo do ator é constante.[/highlight] Essa preocupação diz respeito à consciência e a libertação desse corpo, normalmente encouraçado e reprimido por uma sociedade careta e covarde. Trabalhar o corpo, jargão comum nas salas de ensaio e coxia, é libertá-lo e moldá-lo através dos exercícios do teatro, sejam eles técnicos ou espirituais.
A comparação entre o corpo do artista dos palcos e uma máquina não é incomum e já foi utilizada por diversos teóricos. O mais famoso deles talvez seja o russo Vsevolod Emilevitch Meyerhold, parceiro de Maiakóvski, que definiu da seguinte maneira o princípio de sua biomecânica: [highlight color=”yellow”]”o corpo é uma máquina, quem trabalha é o maquinista”[/highlight].
Esse corpo-máquina do ator é a base de algumas vertentes teatrais, algumas tidas como “experimentais”, e é fato que o estudo dessa relação corpo x máquinas é amplamente desenvolvido nas academias brasileiras e ajudou a transformar e reinventar o teatro através do tempo. Hoje em dia, diversos grupos dedicam-se a um trabalho cênico direcionado pela pesquisa corporal e são sucesso tanto de público quanto de crítica mundo a fora. Se existem diversas referências em relação a esse corpo ao longo da história, e por conta disso diversas técnicas, é preciso compreender que o teatro moderno passa a “devorar” todo tipo de referência e a construir e reconstruir esse corpo do ator a cada novo espetáculo. Da commedia dell’arte ao Butô, da dança contemporânea à dança sagrada dos Orixás, o ator exercita seu corpo em diferentes tradições, extrapola os limites dessa máquina e faz do teatro uma espécie de mecanismo vivo em contínua transformação.
Somos todos maquinistas!
Apesar de uma rotina mecanizada ainda temos em mãos os controles das máquinas. Somos homens suficientemente inteligentes para controlar nossas próprias criações. Ao ator cabe “desnudar” seu próprio corpo, sua máquina de trabalho, em busca de um melhor desempenho a cada sessão. É preciso conciliar a perfeição técnica com o ímpeto da criação, vasculhar cada músculo à procura de novas sensações, contrair e relaxar. O corpo-máquina do ator nunca é desligado e está em exercício constante, por isso é preciso compreendê-lo também fora do palco.
Através do nosso corpo colocamo-nos diante da vida. É ele quem recebe as pancadas do dia-a-dia, é nele que sentimos cada violência dirigida à humanidade, e por conta dele que seguimos em frente. Diante disso, dessa dependência da máquina-corpo, é preciso que o ator enquanto criador se dedique à libertação do corpo de todo ser humano. [highlight color=”yellow”]Um teatro em defesa do corpo é um teatro que o compreenda também como um instrumento de prazer, e não apenas como instrumento de trabalho[/highlight], por isso mais do que mecanizar é preciso às artes desvendar esse corpo, morada do desejo e possibilidade do infinito. Assim, meio homens e meio máquinas, seguiremos firmes na luta pela vida, na luta por Eros.