Harold Bloom, crítico de arte e pesquisador, ao escrever sobre Hamlet, na obra Shakespeare – The invention of the Human¹, diz que ao vermos ou lermos o texto do dramaturgo inglês, logo percebemos que o príncipe da Dinamarca transcende a peça, ainda que, segundo ele “transcendência” não seja uma noção fácil para muitos de nós, “principalmente quando se trata de um contexto secular, como a dramaturgia shakespeariana”*, ele diz. Mas, “algo em Hamlet nos atinge como uma demanda (e uma providência) de evidências de uma esfera de algo além de nosso escopo de sentidos”. O autor usa o termo “desproporção” para caracterizar uma suposta distância entre o príncipe, Hamlet, e toda a peça de Shakespeare – “o fenômeno Hamlet” está enraizado na cultura ocidental e isso faz com que a dramaturgia que o provém seja menor, bem menor, do que ele mesmo.
São considerações semelhantes às de Bloom que esse Hamlet – Processo de Revelação, efetivamente, revela. A montagem é apresentada enquanto uma conversa: é por isso que as luzes da plateia não se apagam, é por isso que Emanuel Aragão pergunta as horas e uma porção de outras coisas ao público – pessoas, de início, assustadas e temerosas e, depois, aptas a dizer, no meio de peça, em alto e bom som, que se perderam na história, “talvez porque algumas pessoas se levantaram para sair”. Sim, o processo de revelação parece residir nisso: é processual, e a medida em que coisas são reveladas, debandar é, para alguns, inevitável. Revelação dói, revelação faz doer, a peça parece me dizer.
A abrangência da narrativa de Hamlet, bem como uma identificação complexa e entranhosa, é o que torna possível, talvez, que a tragédia de vingança seja inteiramente desconstruída. Mais do que recursos interpretativos – ofertar uma nova tradução, apresentar pontos de discordância frente a outras leituras da obra – a peça constitui-se como um entrecruzamento de narrativas. São várias, de fato.
A performatividade existente em se apresentar um Hamlet, ao mesmo tempo, comentado, analisado e, ainda, em diferentes nuances e intensidades, interpretado, torna a peça uma experiência coletiva radical.
A autobiografia (ou, ainda, a autoficção) é o elemento que permite que aquele príncipe, das quatro mil linhas de Shakespeare, seja esse intérprete, bem aqui, na minha frente. E não só: a história pessoal dele, desse homem, é um convite para que, no menor espaço possível, eu também encaixe a minha vivência de príncipe da Dinamarca. Dada a intersecção entre as histórias, ainda são incluídas outras, a medida que a rede de significação, que tem como polo a dramaturgia de Shakespeare, atinge terrenos e contextos outros. A invenção da humanidade parece conter, também, a reinvenção dela. Faz sentido, ainda, outra vez, mais uma vez, a tragédia secular – e, mais do que isso, o espetáculo também nos faz ver que é possível, ainda, outra vez, mais uma vez, uma nova leitura.
A performatividade existente em se apresentar um Hamlet, ao mesmo tempo, comentado, analisado e, ainda, em diferentes nuances e intensidades, interpretado, torna a peça uma experiência coletiva radical – não só porque estamos expostos e falando alto, radicalidade suficiente para um público acostumado ao breu, mas porque nos é exigida uma concentração analítica: “vem comigo” o ator parece dizer, incessantemente, “isso tudo é sobre nós”.
E as pessoas vão. Há lágrimas, aqui e ali. Isso porque, talvez, elas estejam descobrindo que uma peça de teatro também pode falar, assim, declaradamente, sobre coisas. A ficção, a qual muitas esperavam ver, dá lugar para a discussão às claras e, oh!, ela tem a sua força! As sensações de Hamlet, quando enunciadas, promovem no espectador um movimento iniciado no palco – para falar de uma dramaturgia secular eu irei, antes, contar uma breve história minha. Para falar sobre geografias e humanos distantes no espaço e no tempo, eu irei me referir a esse exato momento que, juntos, estamos construindo. Teatro, brutal, com as luzes de serviço acesas.
SERVIÇO | Hamlet – Processo de Revelação
Quem: Coletivo Irmãos Guimarães;
Onde: Sesc da Esquina | Rua Visconde do Rio Branco, 969;
Quando: 24 de março, quinta, às 21h;
Quanto: R$70 e R$35 (meia) + taxas.
¹ BLOOM, Harold. Shakespeare: the invention of the human. New York: Riverhead Books, 1999
*As traduções apresentadas nesse texto foram feitas pelo autor, isto é, não são oficiais.