Agressão. Ameaça. Censura. Ódio. Proibição. Há tempos não víamos tantas palavras perturbadoras ligadas às artes, como há tempos também não presenciávamos uma histeria coletiva como essa que perturba a nação há alguns anos e agora parece ter se instalado enquanto realidade nesse cotidiano absurdo que encaramos diariamente. Se a vida pressupõe a criação, com certeza estamos vivendo pela metade, vigiados e encurralados por metralhadoras ora imaginárias, ora reais, que apontam sua ira em direção a nossa nuca silenciosamente.
Sim, apesar de alguns novos métodos, e da nova tropa hi-tech, os abutres cerceadores da liberdade continuam filhos da escuridão. Algumas vezes, escondem-se em becos e camburões escuros, em outras atrás da turbidez de perfis e notícias falsas que espalham feito peste pela rede. É claro que a epidemia de fake news não é mérito de um ou outro grupelho, mas sabemos que aqueles que pretendem incitar o medo têm a mentira e a manipulação como aliadas. De uma maneira ou de outra, a covardia se afirma enquanto método quando o assunto é proibir. Nada de novo no país da cobra grande? Nada! Continuamos reféns de velhos e conhecidos fantasmas, atualizados feito pacote de dados e baixados em nosso sistema nervoso em forma de amargas lembranças. Nada faz sentido, ou ao menos parece não fazer. A dúvida é, pois, a única certeza que carregamos diante desse horizonte amordaçado.
As discussões não cessam: alguns acreditam que vivemos os tais tempos sombrios que outrora pareciam apenas uma mancha de sangue em nosso passado. Outros, que tudo é uma fase e que não há mais “condições históricas” para perseguições ou caça às bruxas de qualquer espécies. Sei não. Os segundos, além de otimistas demais, parecem-me um tanto quanto ingênuos.
A verdade é que, pelo sim ou pelo não, é preciso que todos estejam atentos, fortes e dispostos a defender com unhas, dentes e carne os direitos que inegavelmente encontram-se em ameaça. Afinal, para aqueles que acham que é exagero evocar novamente a palavra censura, basta um pequeno desviar de olhos ao retrovisor. Não foram poucos os casos de perseguição a artistas nos últimos tempos, como não foram poucas as tentativas, cretinas, que alguns usaram para tentar justificar o injustificável.
Não foram poucos os casos de perseguição a artistas nos últimos tempos, como não foram poucas as tentativas, cretinas, que alguns usaram para tentar justificar o injustificável.
Dos diversos casos de violência contra artistas, três deles ganharam proporções gigantescas e geraram debates acirrados em todos os cantos: redes sociais, jornais, universidades e bares.
São eles: a performance La bête, do coreógrafo Wagner Schwartz; a peça teatral O evangelho segundo Jesus, rainha do céu, protagonizada por Renata Carvalho, e a performance DNA de Dan, de Maikon K.
Aos que não se recordam dos casos, uma breve retrospectiva: Wagner é o coreógrafo acusado de pedofilia pela performance em que se apresentava nu e podia ter seu corpo tocado e manipulado pelo público. Renata é a travesti que encarnou Jesus Cristo no teatro e que teve seu espetáculo proibido por duas vezes sob a acusação de “vilipendiar artigos religiosos”, e Maikon foi acusado de cometer ato obsceno, teve seu cenário rasgado e sofreu ameaça policial.
Tais atos de violência contra os artistas não foram, como já disse, casos isolados. A crescente onda conservadora que assola o Brasil tem se mostrado cada vez mais ruidosa e descontrolada. Soma-se a ela uma horda de novos políticos, como os garotos do MBL, e de velhas ratazanas, como o ignóbil Bolsonaro, que aproveitam-se da situação para manipular e causar pânico na população, tudo em busca de migalhas nas pesquisas eleitorais. Esses são desonestos e irresponsáveis, além de dissimulados, é claro.
É desnecessário reproduzir aqui os absurdos que foram ditos a respeito dos episódios, como também é desnecessário levantar a voz novamente em defesa dos artistas, afinal, os próprios uniram-se, e com eles também a performer Elisabete Finger, mãe da criança que aparecia nos vídeos da apresentação de Wagner tocando os pés do artista, na criação da peça Domínio Público, que será apresentada no próximo mês dentro do Festival de Curitiba.
A obra foi “encomendada” pelos curadores do festival, Guilherme Weber e Marcio Abreu, e busca uma reflexão a respeito da intolerância e dos episódios de ódio tão recorrentes atualmente em toda a sociedade. Uma curiosidade a respeito da obra é o título. Em definição, o domínio público é uma condição jurídica na qual uma obra não possui o elemento do direito real, ou seja: não existe restrição de uso dessa obra, por qualquer pessoa e em qualquer situação. Oras, pois não é justamente isso o que acontece quando tantas pessoas falam como bem entendem a respeito de uma obra que, na maioria das vezes, nem conhecem ou viram? Essas pessoas não se dão a liberdade de praticamente criar uma nova obra que atenda aos seus delírios e paranóias? Infelizmente sim, por isso o título da peça.
É claro que os méritos da encenação só poderão ser medidos depois das apresentações, já que é impossível opinar sobre aquilo que desconhecemos. No entanto, é preciso dizer que a obra já nasce imprescindível, pois demonstra que a violência e a censura, apesar de bárbaras, também podem servir de combustível para a criação. Quanto mais tentam nos calar, mais devemos gritar. Não podemos cair nas armadilhas das discussões virtuais, pois essas atualmente estão em sua maioria irrigadas pelo ódio de ambos os lados, o que anula o debate e gera mais violência. É preciso que respondamos, sim, mas que essas respostas sejam dadas em versos, encenações, canções, filmes, quadros e tudo o quanto for possível criar.
Os episódios que deram origem a Domínio Público mostram que temos censurado mais do que obras: temos censurado também nosso corpos, desejos e amores, por exemplo. Mais do que o sexo, o que realmente parece coberto e aprisionado é o nosso próprio espírito. E com o espirito aprisionado ficaremos eternamente presos nesse fosso de proibições e grilos.
Que Domínio Público sirva para inspirar outras obras de resistência, que o Festival de Curitiba continue atento a seu tempo e propondo encenações e discussões tão preciosas e corajosas como essa e que essa senhora caprichosa chamada liberdade volte a abrir suas asas sobre nós, urgentemente!