Alguns espetáculos vão além de simplesmente transmitir uma mensagem. Eles querem despertar no público uma escuta ativa – uma abertura verdadeira ao que faz sentido e também ao que escapa ao sentido. O Céu da Língua, monólogo criado e interpretado por Gregório Duvivier, é um desses raros momentos no teatro que não querem apenas comunicar, mas provocar. Provocar a presença da palavra em seu estado mais bruto: não como algo que explica, mas como algo que ressoa – denso, sonoro, às vezes obscuro, sempre político.
Apresentado com sessões lotadas na programação do Festival de Curitiba, no palco do Guairão, o espetáculo celebra, sim, os 500 anos de nascimento de Luís de Camões – mas o faz às avessas, desmontando a aura comemorativa para revelar as fissuras da língua portuguesa: sua glória ornamental e suas feridas coloniais, seu erotismo encoberto e sua violência fundadora.
A dramaturgia, escrita e performada pelo próprio Duvivier, é um rizoma verbal que atravessa cinco séculos da língua como quem a escava com o corpo. A cena é habitada por um único ator, mas são múltiplos os sujeitos que ali se manifestam – o intérprete, o poeta, o cômico, o cronista, o pensador. Estreado em 2024, em Portugal, terra natal do idioma, o espetáculo retorna ao Brasil com o peso simbólico de quem atravessa o Atlântico não para reconquistar a origem, mas para desestabilizá-la.
O ator não apenas articula o texto: ele o habita, como quem navega entre a erudição e o coloquial, entre o abismo da dúvida e o riso desconcertante.
Durante o Festival de Curitiba, ocupou o palco do Guairão com uma força de rito: não uma celebração, mas uma reencenação crítica da linguagem, em sua potência poética e sua contaminação histórica.
Sob a direção precisa de Luciana Paes, O Céu da Língua articula-se como um monólogo polifônico, que começa sob a máscara de um recital – gestualidade contida, tom cerimonial – apenas para ir se desdobrando num teatro líquido, no qual o discurso escapa das margens, ora se tornando stand-up político, ora se insinuando como aula performativa, crônica ensaística ou manifesto linguístico. O palco se converte num campo de forças em que as palavras não apenas são ditas, mas tensionadas, torcidas, expostas em sua carne sonora.
Duvivier é um ator da palavra – e da palavra como corpo. Seu trabalho não se ancora na declamação, mas na manipulação tátil da linguagem: ele torce fonemas, sabota clichês, arranca a máscara da eloquência para revelar as vísceras do discurso. Há nele algo de Guimarães Rosa, na experimentação rítmica; algo do padre Antônio Vieira, na oralidade barroca; e algo de Millôr Fernandes e Caetano Veloso, na ironia cortante e no olhar clínico sobre os vícios da língua. O ator não apenas articula o texto: ele o habita, como quem navega entre a erudição e o coloquial, entre o abismo da dúvida e o riso desconcertante.
A presença do contrabaixista Pedro Aune – em cena, ao vivo – funciona como uma contra-voz essencial. Sua música não ilustra, não acompanha, mas dialoga, resiste, desmonta. O som vibra como um segundo corpo, ora em dissonância, ora em harmonia fugidia, instaurando atmosferas ou provocando rupturas. Já as imagens textuais projetadas por Theodora Duvivier, irmã de Gregório, funcionam como fragmentos visuais da própria linguagem – palavras que se desdobram em imagens, signos que se materializam e povoam o espaço cênico como espectros da fala.
‘O Céu da Lingua’: Intertextualidade e insurgência da língua
O centro da cena é a língua portuguesa — não como código gramatical, mas como campo de disputa simbólica. O espetáculo convoca Camões, mas para colocá-lo em conversa com Caetano Veloso, numa genealogia da língua que se permite o desvio, a dissonância, a profanação. No desfecho, “Livros” – canção de Caetano – não é apenas citada: ela reencena, em música, a travessia que o espetáculo propõe.
Quando Caetano subverte o verso de “Chão de Estrelas”, de Orestes Barbosa, transformando o “Tu pisavas nos astros, distraída” em “Tropeçava nos astros, desastrada”, ele instala uma poética da falha, do tropeço como forma de lucidez. Duvivier assume esse tropeço como gesto estético e ético, transitando entre lirismo e crítica, entre o sublime e o escracho.
Não se trata, portanto, de enaltecer a língua como signo de unidade nacional ou identidade cultural. O espetáculo, ao contrário, revela suas fraturas, suas hierarquias, seus apagamentos. Duvivier performa a língua como sintoma — do racismo estrutural, do machismo linguístico, da publicidade cínica, da política e seus discursos vazios. A palavra, aqui, não consola: ela desconstrói, provoca, inquieta.
A dramaturgia aposta na paródia, na prosopopeia, na metáfora proliferante. Há um jogo vertiginoso com prosódias, sotaques, ruídos, desvios. Normas são zombadas, dicionários são desmontados, convenções são desobedecidas. E se não há respostas fáceis, é porque o espetáculo propõe uma escuta inquieta, uma travessia sem mapa.
Encerrar com “Livros” é um gesto coreográfico e filosófico. Após o turbilhão da fala, a música se impõe como respiro, como reencantamento do verbo. O que era excesso se transforma em canto; o que era verbo tenso se transmuta em melodia suspensa. A canção não fecha o espetáculo – ela o abre, novamente, para a reverberação do sentido.
O Céu da Língua é, enfim, uma obra rara. Não pela grandiosidade formal – o espetáculo é deliberadamente contido, econômico, minimalista –, mas pela ousadia de seu gesto simbólico. Em tempos de colapso do discurso público, de desinformação e de banalização da linguagem, Duvivier realiza um ato radical: transforma o palco num laboratório do idioma, onde é possível rir da tragédia e chorar do riso, onde Camões convive com memes, onde Caetano é épico. É teatro da travessia: entre o chão pedregoso das palavras e o céu vertiginoso do pensamento.
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