A morte de Dalton Trevisan, em dezembro do ano passado, deixou um vácuo imenso na literatura brasileira. No entanto, como acontece com grandes autores, sua ausência apenas amplificou sua presença. O mito do contista recluso, avesso à exposição, ganhou ainda mais força, assim como a sua obra, que segue desafiando leitores e intérpretes. A estreia de Daqui Ninguém Sai, ontem, no Teatro Guairinha, em uma sessão lotada do Festival de Curitiba, foi um reflexo dessa inquietação: um espetáculo que busca homenagear Trevisan, mas que, ao mesmo tempo, tenta desvendar o enigma de sua literatura.
A importância de Dalton Trevisan, que faria 100 anos em junho de 2025, para a literatura brasileira é inegável. Considerado por muitos o maior contista do país, sua escrita lapidar, marcada por uma economia extrema de palavras e uma observação aguçada do cotidiano, influenciou gerações de escritores. Ele transformou a cidade de Curitiba em um cenário literário único, capturando seus personagens anônimos, suas tensões sociais e suas contradições. Seu estilo seco e preciso, aliado a um olhar mordaz sobre a condição humana, fez com que suas histórias atravessassem o tempo, permanecendo atuais e inquietantes.
Mais do que um autor, Trevisan ajudou a moldar a identidade curitibana. Sua cidade, retratada em suas histórias, se tornou uma Curitiba imaginária, povoada por figuras marginais, amantes desesperados e tipos urbanos que transitam entre a solidão e o desejo. Seu silêncio e reclusão reforçaram o caráter enigmático de sua obra, criando um fascínio que vai além da literatura. Ler Dalton é, de certa forma, compreender uma Curitiba invisível, que escapa dos cartões-postais e se revela nos pequenos dramas cotidianos.
Era previsível que a peça do Teatro de Comédia do Paraná (TCP) se tornasse um dos espetáculos mais aguardados do evento. Com apresentações também nesta quinta-feira (27), a montagem tem entrada gratuita e deve percorrer a Região Metropolitana, incluindo sessões para escolas, iniciativa louvável ao considerar a pouca leitura da obra do autor entre os mais jovens. Ontem, uma fila imensa se estendia pela Rua Amintas de Barros: o público entrava no teatro pela garagem e chegava à plateia pelo palco, passando por imagens de Dalton feita por Poty Lazzarotto, estampadas em tecidos que compunham a cenografia.
O jogo cênico dá liberdade à interpretação, e o elenco se entrega com intensidade. No entanto, há momentos em que a dramaturgia parece hesitar entre o tributo e a experimentação, o que pode deixar parte do público sem um fio condutor claro.
A empreitada de levar Dalton para o palco foi um desejo pessoal da diretora Nena Inoue, que conseguiu a bênção do próprio autor antes de sua morte. A escolha do nome da peça, inclusive, partiu dele, inspirado em um de seus contos. O envolvimento de Nena com a obra de Trevisan não é de hoje: ela atuou em produções anteriores que levaram a literatura do escritor para os palcos e dirigiu montagens como Paranã e Dalton Cabaré. O seu entusiasmo beira a obsessão, como a própria admite.
Dessa vez, a proposta se diferencia das adaptações anteriores, que estruturavam o espetáculo como uma sucessão de contos. Com a consultoria de Fabiana Faversani, gestora da obra de Trevisan e sua amiga íntima por duas décadas, a peça busca apresentar um Dalton menos óbvio, explorando aspectos pouco abordados de sua escrita e de sua personalidade.
Não se trata apenas de uma nova leitura de contos já conhecidos. A peça traz à tona textos pouco explorados e cartas inéditas do autor, escritas a figuras como Otto Lara Resende, Millôr Fernandes, Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade. Essas correspondências revelam um lado menos enigmático de Trevisan e ajudam a desconstruir a imagem de reclusão e mistério que sempre o cercou.
‘Daqui Ninguém Sai’: arestas
O processo de adaptação para o teatro não foi simples. O dramaturgo Henrique Fontes levou quatro meses apenas para ler toda a obra do autor e, ao longo de 27 versões do texto, condensou cerca de 60 contos na dramaturgia final. Uma maratona literária e dramatúrgica que evidencia a complexidade de se traduzir Trevisan para o palco.
A pergunta que paira no ar é: será que Daqui Ninguém Sai consegue capturar a essência da obra de Trevisan? A montagem, ao optar por um viés metalinguístico, ganha potência, permitindo que os atores explorem a teatralidade do texto sem se prender a uma estrutura rígida. O jogo cênico dá liberdade à interpretação, e o elenco se entrega com intensidade. No entanto, há momentos em que a dramaturgia parece hesitar entre o tributo e a experimentação, o que pode deixar parte do público sem um fio condutor claro.
É importante lembrar que esta foi a primeira apresentação pública do espetáculo. Como toda estreia, há arestas a serem aparadas, seja no ritmo da encenação, seja na coesão entre os diferentes registros que a peça adota. Algumas transições de cena ainda soam truncadas, e o equilíbrio entre as múltiplas camadas narrativas precisa de ajustes para tornar a experiência mais fluida e envolvente.
A cenografia, minimalista, evoca o universo urbano de Trevisan sem recorrer a obviedades. Já a iluminação e a trilha sonora cumprem bem o papel de criar atmosferas que dialogam com a crueza e o lirismo dos textos escolhidos.
Independentemente das escolhas artísticas, a estreia de ontem confirmou que a literatura de Dalton Trevisan ainda pulsa e que seu centenário, mesmo sem ele presente, será lembrado com a intensidade que sua obra merece.
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