Em tempos de incerteza como os que temos atravessado, é necessário um profundo mergulho interior para buscar respostas. Estamos diante do período das impossibilidades. Nossos temores andam, de alguma forma, ganhando forças sobrenaturais diante da passividade com que lidamos com o mundo tal qual o conhecemos hoje. Crenças estão desmoronando diante dos espantados e cansados olhos da humanidade. Tudo vira pó, mas é preciso que o ser humano retorne à carne e encare sua própria miséria. É preciso colocar o cadáver agonizante da humanidade em praça pública.
O teatro, como toda forma de arte, também é tocado por esses tempos sombrios. Mais do que resistir, é preciso reagir! Mas como reagir diante do pessimismo que assola o mundo? O diretor, ator e dramaturgo José Celso Martinez Corrêa encontrou a resposta em Antonin Artaud: CRUELDADE!
O aclamado fundador do Teatro Oficina, famoso pelo combate ao que intitula “burguesia decadente”, volta a encenar a peça radiofônica Pra dar um fim no juízo de Deus escrita pelo teatrólogo francês e encenada pelo Oficina em 1996.
A peça, concebida originalmente como suporte para uma transmissão radiofônica em 1947, é um ataque violento e feroz às crenças religiosas e morais da burguesia que, aos olhos do diretor, continua impondo o seu modo de vida insosso a todos nós. Sangue, esperma e fezes são munições para a violência poética “artaudiana”. A definição de um deus que “se for um ser é merda, senão não o é” e a sacralização da “FéCalidade” demonstram que a obra do poeta francês, além de atual, é completamente indigesta, ainda nos dias de hoje.
Definida pelo diretor como um “manifesto de carne humana”, a montagem tem 60 minutos de duração, algo incomum no repertório recente da companhia, que possui no currículo espetáculos históricos com incríveis oito horas.
Ao reencontrar a força do Teatro da Crueldade, que sempre esteve presente estética e filosoficamente no Teatro Oficina, Zé Celso demonstra que continua sendo um dos diretores teatrais mais interessantes e inquietos da atualidade.
Ao reencontrar a força do Teatro da Crueldade, que sempre esteve presente estética e filosoficamente no Teatro Oficina, Zé Celso demonstra que continua sendo um dos diretores teatrais mais interessantes e inquietos da atualidade. A incansável luta do diretor contra o status quo e qualquer tipo de repressão encontra em Artaud a violência necessária para libertar o homem de suas mais profundas couraças e coroá-lo enquanto um animal erótico e selvagem.
Antonin Artaud defendeu com seu corpo, livre de órgãos, que o artista não limitasse à tragédia ao palco. Para ele, um artista coerente e combativo não dissocia obra e vida, tornando-se, ele próprio, sua grande obra-prima. Existem relatos de uma palestra no México em que Artaud incorpora o Homem-Teatro, realizando um happening arrepiante. No atual panorama teatral, é possível dizer que, assim como o teatrólogo inventor do Teatro da Crueldade, Zé Celso incorpora o seu teatro e o carrega grafado à sangue em sua própria pele. A grandiosidade do reencontro desses dois Homens-Teatro no Brasil, diante de sua atual situação política e ideológica, vai fundir a cuca dos caretas.
Na concepção de Zé Celso, “é preciso descer até o esgoto de nós mesmos para sentir o insuportável cheiro do homem moderno”. Afinal, como diz Antonin Artaud em sua peça: “onde cheira merda, cheira a ser”.
Tremei, oh canalhas!
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