“Um café, uma água com gás e um cigarro de palha pra arejar o peito”; foi esse o pedido, tão simples quanto bonito, que meu amigo fez ao rapaz de avental antes de iniciar o discurso que motivou a feitura desse texto. Notei que algo o incomodava, mas não comentei nada. Então, começou: “Zambelli, o problema começou com as leis de incentivo e as empresas especializadas, passou pelo marketing cultural e por essa balela de endomarketing que nos enfiaram goela abaixo e foi dar nesse troço de Netflix”.
Eu, espantado com a maneira como o amigo havia quebrado o silêncio, só tive tempo de balbuciar entre um gole e outro: “Netflix”? Ele: “sim, você fala tanto do Roberto Alvim mas a maior ameaça para o teatro brasileiro é o Netflix, ou melhor: o streaming”. E continuou. “Vou te contar uma coisa absurda que me aconteceu hoje. Absurda!”, e demonstrava o tamanho desse absurdo com um gesto longo empunhando o cigarro de palha como se fosse uma espada.
O troço é o seguinte: o amigo, que desde sempre se considera um militante da cultura, há tempos se embrenhou pela feitura da coisa sempre na mão vazia, no esforço mútuo, no famoso “do it yourself”. Professor por vocação e artista por provocação, foi ele quem, há séculos, me contagiou com o bichinho do teatro, período em que levantamos juntos algumas peças no dente, como ele gosta de dizer. Avesso às leis de incentivo, “mecanismos de controle e censura velada”, o amigo sempre preferiu “o chapéu ao fim da peça à coleira ideológica na criação” e eu sempre considerei seu idealismo um tanto quanto violento e, confesso, estúpido em alguns casos.
Sempre acreditei que não é preciso romantizar a coisa. Somos artistas, lutamos por um mundo, evidentemente, mas também merecemos viver do nosso ofício de maneira digna, simples assim. Esse pensamento nunca me contaminou a ponto de vê-lo como um artista menor, pelo contrário: o amigo é dos gigantes, dos imprescindíveis, e sua obsessão e disciplina pra criar o caos em matéria de arte sempre causaram certa inveja a esse pobre trabalhador da cultura. Em suma: o cabra é foda.
No entanto, esse anarquista sem coroa sabe que a vida pesa, por isso aceitou, a muito custo, participar de um “troço desses”. O troço a que ele se refere é um projeto, um bom projeto aliás, que ele concebeu há anos junto à sua companheira. Um projeto bonito, até mesmo necessário, mas que nunca haviam conseguido emplacar. Isso até outro dia, o dia em que conheceram Fernando. Fernando, segundo o amigo, é um desses “hipsters que usam a barba como cartão de visita e tomam cerveja em barbearia”, notem que o camarada além de um grosseirão incorrigível é também um homem empoeirado, um ancião avesso às modernidades.
Sempre acreditei que não é preciso romantizar a coisa. Somos artistas, lutamos por um mundo, evidentemente, mas também merecemos viver do nosso ofício de maneira digna, simples assim.
O tal Felipe é dono de “uma empresa especializada na gestão e produção de projetos através das leis de incentivo fiscal” e conheceu a companheira de meu amigo num dos cursos que ministrou na Pauliceia. Na hora do coffee break, a moça comentou com o rapaz sobre um projeto engavetado. Ali, diante da cliente, Fernando foi amável e passou seu e-mail para que fosse enviado o tal projeto. Dias passaram, meses correram e nada. “A gente já tava desistindo quando o cabra deu a resposta, elogiando pra cacete a coisa toda e nos jogando lá pra cima. Mordemos a isca de cara, né? Afinal, artista jogado às traças é tão carente que só de ouvir um elogio já balanço o rabo”, disse o amigo.
Naquele momento, eu enxergava seu rosto disforme por trás do copo, como se visse meu amigo através de um espelho de sangue enquanto ele falava “a coisa foi toda combinada, alinhada e posta num contrato, coisa com a qual não estava acostumado. Nada de fio de bigode, acho que pra evitar outra ida ao barbeiro. Combinei com Fernando hoje à tarde de nos encontrarmos em sua casa para fechar o troço, e foi de lá que saí arrasado”. Estranhei. Perguntei se o maldito hipster tinha feito algo contra ele. O amigo apenas fez que não com a cabeça. “Ele te humilhou, xingou?”, perguntei. Ele apenas negativou com o pescoço novamente. “O problema”, balbuciou o amigo, “é que ele é o cara da empresa e eu sou simplesmente o artista”, disse e deslizou tristemente na cadeira.
“Ele mora num casarão no Centro, Bruno. Todo reformado. Um castelo digno de um Barão desses tempos modernos. São os novos Barões da cultura sugando o nosso sangue”, dizia o amigo. Quem passasse por aquele café naquele momento não teria dúvidas em classificá-lo de invejoso. Mas a coisa é mais complexa, e não digo isso por conta do amigo. Segundo ele, a reunião foi rápida e direta: eles, o casal, ficariam responsáveis por toda a questão artística. Ele, Fernando, ficaria responsável pela captação da grana e a prestação de contas.
Disse ao amigo que tinha uma lista de empresas, todas em acordo de exclusividade para trabalhar apenas com os artistas e projetos dele. Disse, também, que a captação era “difícil, amarrada assim mesmo, pois nós também precisamos ganhar. O que seria do mercado se o artista chegasse lá na empresa com uma pastinha debaixo do braço e conseguisse a captação?”. Segundo Fernando, dono de uma EIRELI, a burocracia é necessária para manter todos ganhando. E, segundo meu amigo disse, Fernando ganha mesmo, e muito bem.
A divisão seria de 40/60, sendo que Fernando receberia os 40% devidos de sua empresa livres; todos os custos, de gráfica a cachês, sairiam dos 60% restante. “É o custo do conhecimento técnico”, disse Fernando, como se criar e produzir uma peça fosse uma espécie de alquimia e não exigisse nada além de uma vontade absurda. Meu amigo, perplexo, ainda tentou negociar a coisa mas não obteve êxito. Segundo Fernando, “somos os mais baratos do mercado, é isso ou amargar mais uns anos de gaveta”, disse o empresário.
Ali, perdido entre a raiva e o desespero, pegou a caneta e assinou aquilo que ele nomeou de “a maior vergonha da vida”. Sua esposa ficou, comemorando com o novo amigo. Ele saiu andando, mirando o Centro, na esperança de afogar suas mágoas em algum canto até esbarrar comigo. “No fim das contas, pelos cálculos que fiz, sou o que menos vai ganhar no troço. O que menos vai ganhar, acredita?”. Eu não disse, mas acredito. Respeitei o silêncio, o luto do amigo. Naquele dia, durante aquela tarde, ele havia morrido pra si mesmo.
Na impossibilidade de convencê-lo do contrário, de convencê-lo de que é um artista muito bom, apenas respeitei seu luto fazendo companhia. Levantamos, pagamos a conta e seguimos pela rua escura. Na esquina, quase na despedida, rompi o silêncio fúnebre: “E o Netflix”, perguntei. O amigo então sorriu pela primeira vez. E respondeu: “O Netflix é a maior ameaça ao teatro brasileiro, foi Fernando quem me disse”. “Como assim”, perguntei novamente. O amigo: “Segundo ele, as pessoas cada vez mais consomem arte via streaming, em casa, e estão pouco a pouco deixando as salas de teatro vazia. Disse que o troço é sem volta, estamos fadados ao abandono e em pouquíssimo tempo, a não ser que façamos algo a respeito”.
Eu olhei pro amigo e não me contive. “E aí, o que faremos a respeito”, indaguei. Ele, olhos novamente cerrados, cigarro no canto da boca, disse: “Você eu não sei, mas eu ainda hoje assinarei a bagaça na esperança de colaborar com a ruína do castelo de Felipe”. E foi embora gargalhando fumaça, o cretino, sumindo na escuridão de onde sonhava nunca ter saído em direção àquela tarde.