Quando assumiu a Companhia de Teatro NTGent, baseada em Gent, na Bélgica, Milo Rau publicou um manifesto violento e provocativo no qual se comprometia, entre outras coisas, a ensaiar ou encenar uma peça por ano em uma zona de conflito. A ideia é repensar clássicos através das lentes do século XXI, um tempo marcado pelas guerras e pelo terrorismo. Um tempo que sente no olhar o peso da poeira do horror cotidiano.
Mossul, no Iraque, é uma dessas cidades que a guerra transformou em pó. Coberta de poeira, entupida pelo lixo causado pelos conflitos em seu ventre, a múmia cinzenta de hoje em dia em nada lembra a bela cidade que mora na memória dos cidadãos e resiste nos poucos retratos que brotam no meio dos escombros. De cisco em cisco, de explosão e explosão, a cidade foi sendo dissolvida, virando cinzas, sendo riscada do mapa. Mossul é a morada permanente da tragédia.
Orestes em Mossul
Baseada na Oresteia, trilogia de peças teatrais de autoria do dramaturgo grego Ésquilo, Orestes em Mossul é a primeira obra de Milo Rau que cumpre o prometido em seu manifesto. Com um elenco composto de atores iraquianos e europeus, o diretor ambienta a trilogia de Orestes, como também é conhecida a Oresteia, na cidade milenar do Iraque, destruída pelos conflitos causados pelos cinco anos do autoproclamado califado do grupo Estado Islâmico.
Com um elenco composto de atores iraquianos e europeus, o diretor ambienta a trilogia de Orestes, como também é conhecida a Oresteia, na cidade milenar do Iraque.
Os ensaios aconteceram diariamente, durante 10 dias, nas ruínas do que um dia foi o instituo de Belas-Artes da cidade. A tragédia grega ganha um cenário contemporâneo, mas é impossível negar que a dor e o peso da existência estão em cada canto daquela cidade em ruínas, mais antiga do que Atenas.
Pela dificuldade extrema de conseguir vistos europeus para os atores iraquianos, Rau e sua equipe, incluindo atores, foram para Mossul ensaiar, dar treinamento cênico e gravar todo o processo. O obra definitiva, completa, é uma combinação de trechos gravados de discussões e ensaios no Iraque com performances de sete atores europeus no palco, sendo dois deles de origem iraquiana. A estreia do espetáculo aconteceu no dia 17 de abril, na sede da companhia na Bélgica, e segue em turnê pela Europa. Milo Rau, que foi o grande destaque do MITsp em março desse ano, promete uma volta ao país em novembro, mas com outra obra, dessa vez dedicada a Jesus Cristo.
Que a iniciativa e a promessa de Rau não parem por aí. O poder de transformação da arte possibilita tudo, inclusive ajudar a fundar uma nova civilização mesmo que a inventemos na poeira dos escombros de uma maldita guerra. Se bombardeios, tiroteios, assassinatos e exploração são as negações mais absurdas da humanidade, o teatro, a arte, são o oposto disso. A dor vem, bate forte e assusta. A tragédia pesa nos ombros, encharca os olhos, tira a vontade de viver mas não pode nos matar. Afinal, como diz Ésquilo, através da dor esconde-se algo mais do que o simples desespero. “Nada revela a verdade, nada nos relata como as coisas realmente são, nada nos obriga a compreender, com exceção do sofrimento. A verdade vem da dor.”