Dar vida a uma peça do teatro não é tarefa das mais fáceis. O processo cênico, além de complexo, é regido, de maneira absoluta, pelo acaso. Por mais planejamento que se faça, independente das pré-definições desejadas e colocadas em prática, nunca temos a absoluta certeza do que nos aguarda ao pisar o terreiro sagrado do Deus oculto nas folhas da videira. Todo espetáculo está sujeito aos caprichos de Dioniso, e é esse o grande barato de toda estreia: o mistério.
Da concepção à realização de um espetáculo existe um caminho árduo e prazeroso a ser traçado. Em primeiro lugar, é preciso dizer que a base de todo processo é, ou ao menos deveria ser, a pesquisa. Desvendamos e devoramos textos, autores, referências e possibilidades em busca de um melhor entendimento, ou deglutição, da obra a ser gerada. O ventre do artista é a morada do infinito e deve ser aproveitado como tal.
Paralelo ao trabalho de pesquisa, que é contínuo e acontece inclusive durante temporadas, é preciso, explicando a grosso modo, colocar a peça “em pé”. O trabalho de palco, que é indissociável de todo processo, envolve inúmeros passos. A composição de personagens, por exemplo, acontece de maneira minuciosa, o que demanda tempo e dedicação integral. Diretores, atores, técnicos, prestadores de serviço; manter uma unidade de pensamentos e desejos coletivos em um processo artístico não é algo simples, convenhamos.
Jean-Paul Sartre abre o seu romance A Náusea com a seguinte frase de Céline: “É um rapaz sem importância coletiva; é apenas um indivíduo”. Claro que para Antoine Roquentin, protagonista do livro, uma peça de teatro não carrega em si a essência e o sentido necessários para dar razão a uma existência vazia, no entanto a frase de Céline, como tudo o que leio, sempre me levou a refletir sobre as possibilidades do teatro.
Evidentemente não tenho o conhecimento necessário e muito menos a pretensão de fazer uma análise filosófica do trecho citado, mas sim uma reflexão sobre o indivíduo imerso nesse transe coletivo que é um espetáculo, principalmente em relação ao público. O público: reside aí a grande dúvida, ou a insegurança em alguns casos, de toda peça. Cria-se buscando sempre o outro, caso contrário todas as obras estariam cravadas no peito de seu autor e engavetadas por toda a eternidade.
A coisa fica ainda mais complicada quando entende-se que uma peça de teatro é, acima de tudo, um ritual. E todo rito acontece através do transe coletivo, mas busca tocar e modificar o indivíduo. Por isso, é extremamente complicado lidar com os ensaios, todas as pessoas envolvidas sabem a falta que faz o outro, enquanto público, quando criamos e testamos as cenas que compõe a obra. É chegada uma hora em que já não conseguimos alcançar toda a potência da encenação diante da sala vazia, tal qual a vida de Roquentin. Como resolver tal questão? Como avançar diante desse abismo e alcançar tudo o quanto for possível de um gesto ou uma fala sem ter, diante dos olhos, o receptor de tudo o que se cria? A única resposta possível é a prática do ensaio aberto.
“Como avançar diante desse abismo e alcançar tudo o quanto for possível de um gesto ou uma fala sem ter, diante dos olhos, o receptor de tudo o que se cria?”
Em primeiro lugar, é preciso dizer que o ensaio aberto é uma prática antiga que vem ganhando cada vez mais adeptos desde que foi praticamente “institucionalizada” pelo dito Teatro Experimental. É possível encontrar atualmente programações teatrais recheadas de ensaios abertos ao público. Realizá-los, nos dias de hoje, é algo praticamente obrigatório e faz parte do calendário de diversos grupos Brasil afora.
É claro que quando falamos em ensaio aberto não estamos nos referindo a um ensaio comum, existe uma preparação para transformar o que foi criado até o momento em uma experiência cênica para o público. Apesar do clima mais despojado e informal, com correções e intervenções, o ensaio aberto é público e por isso merece um tratamento mais delicado e atencioso do que um ensaio rotineiro. Seria absolutamento modorrento para os espectadores presenciarem um ensaio onde atores se debruçam por horas em uma única cena, por exemplo, mas é através dele que podemos vivenciar uma experiência de contato com público no meio do processo de criação, o que pode alterar certos rumos, derrubar certezas e desvendar mistérios.
A cidade está em chamas, como disseram os Stones, e é preciso se contagiar com as labaredas para alcançar o fogo da iluminação. O teatro acontece na busca pelo outro e é imprescindível que o processo envolva a possibilidade desse encontro, construindo uma obra livre em todos os sentidos.
Que as companhias e grupos teatrais busquem cada vez mais descobrir e incluir o público em seus processos e que todos nós tenhamos ensaios, espíritos e peitos abertos para mergulhar nos mistérios que envolvem o fazer artísitico e, assim, encontrar uma saída para o vazio e a angústia que nos atormentam diante da ordem do mundo.
Que o encontro, aconteça ele onde for, nos cure o mal estar dessa Náusea!