A estrela chorou rosa ao fundo de tua orelha,
O espaço rolou branco entre a nuca e o quadril
O mar perolou ruivo a mamila vermelha
E o homem sangrou negro o flanco senhoril.
Arthur Rimbaud
A alegria, incontestável prova dos nove, é uma euforia multicolorida que nos toma o peito. Um estado de iluminação profana que nos permite tudo e leva ao êxtase para nos livrar da convivência diária com nossos próprios demônios. Irmã libertária da felicidade, e essa confesso que jamais conheci, a dama caprichosa da euforia pincela-nos a alma com as cores da liberdade, além de nos legar a certeza de um sorriso, algo raro nos dias atuais.
Em épocas governadas pelo horror, a alegria além de uma raridade é, também, a única forma de rebelião. Sim, teimamos em acreditar no amor acima de tudo e temos a certeza de que triunfaremos, mesmo diante do apocalíptico sorriso do ladravaz que comanda a república dos canalhas. Afora a liberdade, temos pouquíssimas possibilidades de vivacidade e delírio. Infelizmente!
Atualmente vivemos em um mundo monocromático, sofrendo terrivelmente de uma crescente falta de cor em nossos lábios. Somos filhos de uma época escura. Somos responsáveis pela descoloração de nossa própria existência e vivemos, pincéis em mãos, perdidos diante dessa tela/mundo na qual não conseguimos criar absolutamente nada, nem mesmo um esboço daquilo que deveríamos ter sido.
Somos a geração do eterno rascunho. Resta-nos, portanto, enquanto artistas, assumir o papel de representantes universais da liberdade, condenando com veemência os atos de selvageria e barbárie que vemos em nosso tempo. A completa falta de cores lembra, inevitavelmente, uma morte que se aproxima a passos largos e que nos afronta, através de bestiais representantes, afim de calar a pouca voz que nos resta.
Por sorte ainda temos um palco apagado onde podemos chorar nossas mágoas em paz. O teatro é tido por muitos como uma mera representação. Um retrato cuspido da vida que tardia em nossas veias e é levado ao palco para divertir e “informar” um público sedento por entretenimento, e com preguiça de pensar. Nesse sentido, o teatro não passa de uma extensão deplorável dos folhetins televisivos que, em sua maioria, alienam e manipulam um espectador que compreende o mundo através dos luminosos olhos daqueles que pregam a cegueira coletiva.
Esse tipo de pensamento, ainda comum em nossos dias, ignora a força de uma arte que resiste e se reinventa diante do abuso e da estupidez. Uma arte pulsante que não admite conivência seja com a patota da patrulha ideológica ou com o crescente fascismo que nos atormenta o sono.
Em tempos de violência, a crença no teatro, e por consequência no afeto, é um ato de coragem e lucidez. Resistir através do teatro é obrigação daqueles que tem fé no exercício democrático da possibilidade. É possível viver em paz, mesmo com o bafo da intolerância em nossa nuca? É, mas só quando acreditamos no combate artístico, na luta poética de uma vida construída da peleja contra o ódio.
Ou o teatro se rebela ou será sempre uma casa de senhoras dedicada ao desastroso exercício da submissão. É preciso um bombardeio de saturação para que cheguemos, novamente, a um estado de embriaguez que nos leve ao colorido reduto dos sonhos. A mortífera máquina do padecimento precisa ser destruída através do mecanismo quente do desejo.
Entre os absurdos porões da intolerância e a burrice primária daqueles que entoam palavras de ordem em um domingo amarelo, fica esse gosto de sangue preso na garganta e a convicção de que brincar de vida é um passatempo que leva, inevitavelmente, à morte.
Estar vivo é entregar-se à luta, sempre!
Entre os absurdos porões da intolerância e a burrice primária daqueles que entoam palavras de ordem em um domingo amarelo, fica esse gosto de sangue preso na garganta.
A clássica tragédia de nossa existência acinzentada é tão disforme quanto o rosto pálido do vampiro que saliva diante de uma vítima indefesa e morta. Clamamos por uma reconstrução do mundo. Clamamos pela presença mágica da paz, de uma tolerância esculpida em beijos e gritos de desespero. De um sonho protagonizado por uma humanidade que saiba, novamente, o significado de ser humano.
Olhamos para o homem enquanto símbolo de uma destruição perene, mas não nos furtamos em acreditar que ele possa ser também a possibilidade de encontro e convivência com um homem que ainda está por nascer, um ser humano dotado da mais preciosa generosidade da qual se teve notícia.
Houve uma falência violenta do que se dizia vida. Existimos em cifras, colhemos o ódio na esquina e, ao que parece, esquecemo-nos completamente do significado da esperança. Cá estamos, deformados por um vazio que corrói a alma e presos a couraças que estraçalham o espírito.
Diante da negação cotidiana que recebemos do mundo é preciso que nos levantemos e gritemos, a plenos pulmões, que não! Não aceitaremos o discurso podre do burocrata, tão pouco seremos a isca no anzol do primata que levanta a mão ao invés de entortar os lábio em um sorriso do tamanho da nação.
Como um Serafim, com a ponte gigantesca que leva ao infinito, insisto na vida escura e vos digo que sou, feito ele, um dos tantos cidadãos livres desse eterno fazendão, pois tenho um canhão no meu quintal. O canhão, que ao invés de ferro é feito de carne, batuca no peito ao som do alarde e me dá a certeza de que, mesmo disforme, ainda há vida que arde nesse carrossel de fantasmas.
Que as cores nos salvem dessa segunda-feira negra feita de gente podre. E que, caso o terror seja inevitável, ainda nos sobre um pequeno teatro onde possamos forjar uma espécie nova de felicidade: aquela que brota do coração dos homens.
Amém.