Moriré en buenos aires, será de madrugada
Que es la hora en que mueren los que saben morir
Flotará en mi silencio la mufa perfumada
De aquel verso que nunca yo te supe decir”
Horacio Ferrer
A trágica e atraente madrugada desponta no fundo da janela do quarto vazio. Lá fora, enquanto dorme toda a cidade, almas penadas e partidas, marginais de todos os tipos e outros personagens típicos das noites insones das grandes cidades desfilam entre goles de esperança e desespero à espera do sono, da morte ou do arrebol porvir.
María é um desses personagens. Menina quebrada na boca da noite, sua história é tão comum quanto a sua profissão, e depois de rodar as noites mundo María adentrou pela primeira vez o palco do Theatro Municipal de São Paulo, em comemoração aos 110 anos desse gigante que habita a praça Ramos de Azevedo, no centro da capital paulistana.
Com concepção e direção geral de Kiko Goifman, direção musical e regência de Roberto Minczuk e direção cênica de Ronaldo Zero, María de Buenos Aires tem atuação de quatro mulheres do Coletivo Daspu, que atuam ao lado da solista colombiana Catalina Cuervo, do barítono Gustavo Feulien e do ator Rodrigo Lopez, além de três bailarinos do balé da cidade e 2 performers membros do Coro Lírico.
De Buenos Aires, María. Yo soy mi ciudad
“Una operita”, foi assim que o gênio do gênero, Astor Piazzolla, definiu sua obra María de Buenos Aires quando da estreia na sala Planeta no ano de 1968. A ópera, com libreto do poeta argentino-uruguaio Horacio Ferrer, conta através da beleza fatal do Tango, a vida, a morte, a ressurreição e a maternidade de María. Nascida em um dia “em que Deus estava bêbado”, a personagem, após fim trágico, é condenada a vagar pelas ruas baixas da capital argentina até dar a luz, não a um menino, como na profecia, mas a uma menina: uma outra María, que como a sombra da mãe já nasce condenada às ruas e às vontades da madrugada.
Ao longo de 17 quadros, divididos em duas partes de 8 canções cada, Piazzolla e Ferrer desnudam personagens típicos da vida noturna portenha. Entre a realidade trivial e os sonhos surrealistas, Maria convive com poetas, duendes, um circo de psicanalistas e vive histórias quase bíblicas ao longo de sua jornada. Cantos, declamações, canções; tudo na obra discute a condição feminina através do trabalho e da vida doída e mágica da personagem principal.
Cantos, declamações, canções; tudo na obra discute a condição feminina através do trabalho e da vida doída e mágica da personagem principal.
“Reinvindicar minha identidade como puta nesse palco”
Betânia Santos, de 48 anos, é uma das quatro integrantes do coletivo Daspu que compõe o elenco da montagem. O coletivo, que na realidade é uma marca do setor de moda e vestuários pertencente à ONG Dádiva, foi lançado em 2005 e desde então é um sucesso. Já a ONG foi criada em 1992 por Gabriela Leite, e está voltada para questões ligadas à cidadania das prostitutas e para iniciativas visando a organização da categoria.
Integra a Rede Brasileira de Prostitutas que tem a missão de articular politicamente o movimento de defesa e promoção dos direitos dessas profissionais. A Dávida manifesta seu repúdio à vitimização das prostitutas, e anuncia o combate à discriminação, ao preconceito e ao estigma. E, sobretudo, não preconiza o abandono da prostituição. Ao contrário, defende o direito das prostitutas prestarem serviços sexuais, afirmando que devem assumir sua profissão em vez de envergonharem-se dela.
Além de Betânia, a Daspu empresta ao elenco Dannyele Cavalcante, Elaine Bortolanza e Lua Negra. A parceria com o coletivo não foi o primeiro trabalho em parceria com o cineasta Kiko Goifman, diretor do ótimo Bixa Travesty e diretor geral da montagem. Como o criador inquieto que é, sempre disposto a tocar tabus e enfrentar o moralismo perene que nos assombra, o diretor acerta em cheio em dar voz e corpo a María através de mulheres que, como ela, conhecem a dor e a delícia de viver e sobreviver daquela que, como diz o dito popular, é a mais antiga das profissões. O espetáculo ainda conta com imagens editadas ao vivo e passadas em dois telões, uma dupla de bailarinos e performers.
Não apenas em épocas como a que vivemos, em que o obscurantismo toma a realidade de assalto e a maldade humana parece dar as cartas, é necessário dar voz às minorias que são, de fato, a maioria da população brasileira. Nos 110 anos do Municipal, é um alento assistir à comemoração através de uma ópera latina, passada e escrita nas ruas e bordéis de uma grande metrópole.
Aquele palco, quase sempre restrito a uma elite que finge desconhecer a realidade nacional, agora abriga história e arte de mulheres que vivem a vida de fato, sem direito a fantasias ou sonhos, uma noite após a outra, cliente a cliente, em busca de uma vida digna e menos doída. Que em seu aniversário o Municipal possa reaprender a flertar com o povo, quase sempre afastado a contragosto de sua sala, e passe a abrigar tantas outras Marías com suas histórias de vida e beleza em seu ventre de concreto e luxo.