A peça A Invenção do Nordeste, um dos espetáculos que encerraram o Festival de Curitiba no último fim de semana, parte de um texto acadêmico: o livro homônimo do historiador Durval Muniz de Albuquerque Jr., uma tese de doutorado. Essa origem, digamos, mais erudita, embora essencial à concepção dramatúrgica da montagem do Grupo Carmim, com sede no Rio Grande do Norte, não a define na forma.
A dramaturgia desconstrói o estereótipo do “nordestino”, ou o que essa expressão generalizante e exótica costuma evocar. No texto, de autoria de Henrique Fontes e Pablo Capistrano, uma equipe de cinema “sudestina” quer um ator da região para fazer um personagem “nordestino”, apostando na pretensa potência desse adjetivo reducionista.
Dois jovens, um do litoral (Robson Medeiros) e outro do interior (Mateus Cardoso), disputam o papel. Eles passam por um workshop de sete semanas com um diretor local (Henrique Fontes). Cada um vem com suas certezas, baseadas em suas experiências individuais, apostando que os credenciam a ser um nordestino mais autêntico. Ao longo do processo, vão percebendo que suas visões também são redutoras. Mas não é só isso.
A excepcional dramaturgia, ao mesmo tempo muito acessível mas crítica, convida ao diálogo e golpeia a questão na boca do estômago.
Aos poucos, os dois atores se dão conta de que, para ganhar o papel, precisam corresponder a certas expectativas, que passam pelas expectativas de quem os contratará. Não basta apenas ser nordestino, tem que parecer ser.
A excepcional dramaturgia, ao mesmo tempo muito acessível mas crítica, convida ao diálogo e golpeia a questão na boca do estômago. Ninguém pensa em paulistas, cariocas ou mineiros como se tivessem uma identidade cultural única, por conta de viverem na mesma região, o Sudeste. Mas os habitantes de um dos nove estados do Nordeste, para quem é de fora, são rotulados a partir de sua regionalidade e, geralmente, de forma estereotipada, quando não meramente preconceituosa, racista e/ou xenófoba. E é isso que A Invenção do Nordeste discute com muito humor, ironia e propriedade.
De forma didática, porém nunca condescendente, a dramaturgia problematiza essas questões de forma profunda, crítica, afinal parte de um substrato acadêmico, porém sempre de maneira acessível, para aproximar o espectador da discussão.
Nesse sentido, a diretora Quitéria Kelly acerta em cheio ao propor um hibridismo de linguagens, recorrendo à tecnologia para construir a encenação, muito ágil. Utiliza projeções em vídeo (inclusive do clássico Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha) celular, tablet. Também assistimos e ouvimos gravações em vídeo e áudio, com direito a falas do ex-presidente Jair Bolsonaro sobre o Nordeste. Ela também busca capas de revistas e reproduções de obras de arte, criando uma montagem dinâmica, ilustrativa e muito provocativa.
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