Pouco a pouco, mesmo que acomodado em cima de uma pilha de mortos, o Brasil ensaia o tal retorno à normalidade. Lá fora, apesar da tragédia, tudo parece normal: os bares estão cheios de almas vazias, os ônibus cruzam a cidade com o bucho entupido de gente, as filas nos hospitais ainda dobram as esquinas e, em muitos lugares, desde a última sexta-feira (04), os teatros estão autorizados a retomar as suas atividades respeitando uma série de requisitos que, dizem mas não provam, garantem o funcionamento dos espaços sem risco de contaminação tanto para o público quanto para os trabalhadores.
Com ocupação máxima limitada a 40% da capacidade, público apenas sentado, limite de horário para funcionamento e controle de acesso, a pergunta que fica é: você se arriscaria para ir ao teatro atualmente? Além disso, e isso é de uma relevância tremenda, os grupos e espaços que mesmo com 100% de sua capacidade enfrentavam dificuldades para fechar as contas, acham que vale a pena correr o risco para abrir as portas com menos da metade dos lugares disponíveis? É claro que não compensa. Mesmo assim, a maioria dos artistas acredita que já que é permitido e possível retornar, e, apesar de discordar dessa lógica, não é difícil entender a urgência em reabrir as portas.
O governo faz o possível e o impossível, ou o impensável, para sabotar e dificultar as coisas na Cultura. O rodízio de nomes na Secretaria Especial, os cortes e ameaças de retaliação, além da exigência de alinhamento ideológico, são só algumas das infinitas provas de que o governo pretende combater e não auxiliar a arte e a cultura no Brasil. Por conta disso, o presidente enrolou e segurou o quanto conseguiu o auxilio para os trabalhadores da cultura.
Conquistada na base da pressão e do grito, a Lei Aldir Blanc foi regulamentada por Jair Bolsonaro apenas em meados de agosto, e a previsão é de que até o fim de setembro o dinheiro seja repassado aos grupos e artistas que tiverem direito ao benefício. Setembro, isso mesmo. A pequena regressão a respeito da omissão Bolsonarista faz-se necessária para compreender alguns motivos que levam os artistas a preferirem assumir os riscos do que a acreditar em algum auxílio de quem quer que seja. Além disso, sabemos que em alguns períodos históricos criar é uma forma de se manter vivo.
Violenta como um soco, contagiante como uma doença e imprescindível como a esperança, a arte é uma maneira que inventamos de contar e movimentar a vida através da poesia e do sonho.
Diferente de outros, o trabalho artístico tem o privilégio de ser também uma forma de expressão. Uma peça de teatro, uma performance, um filme, um passo de dança; mais do que obras ou meios de vida, as artes são ferramentas para reivindicar direitos, denunciar injustiças e, pelo bem ou pelo mal, transformar o mundo.
Nesse mundo em que estamos cada vez mais sufocados, a impossibilidade é tão nociva quanto a própria doença, por isso é provável, apesar de desaconselhável, que os espaços e grupos de teatro também escolham a labuta em detrimento da razão e enfrentem o vírus para tentar forjar uma realidade possível.
Quando se está jogado às traças, quando sua existência é combatida ao invés de exaltada, é preciso, mais do que manter-se vivo, manter-se em movimento. Talvez seja isso, essa possibilidade de sentir a vida se movimentar novamente nas veias, a grande justificativa para que artistas estejam exigindo o direito de pelejar com a morte diariamente para exercer seu ofício. Talvez as apresentações na grande rede tenham saciado a fome de espetáculos do público, mas deixado o artista, acostumado com o palco e precisado dos aplausos, com a barriga cheia e a alma anêmica.
Sabe-se lá. O fato é que, como tudo por aqui, as salas de espetáculos também irão reabrir sem cuidado, com números de casos e óbitos assustadores e por uma decisão respaldada apenas pela falta de empatia criminosa dos seres que nos governam. Impossível saber o que é pior pro país: um isolamento meia-bomba ou uma reabertura inconsequente. Para eles pouco importa. No fim das contas, a coisa é tocada do mesmo jeito há séculos: diante da cruz e da espada, tendo de escolher entre o precipício e o abismo, o trabalhador brasileiro vive a velha realidade da exploração e do sacrifício, dessa vez justificada através da tal nova normalidade.