São Paulo é dessas terras incompreensíveis que guardam na fuligem de seu céu acinzentado amores e ódios, nem sempre na mesma proporção. A cidade que há tempos povoa meus pensamentos e embrutece minha rotina, não poderia deixar de ser cenário desses escritos que dirijo aos ventos cibernéticos semanalmente neste espaço.
Já me curvei a seus encantos por aqui, assim como já denunciei o horror que corre, cada vez mais à vontade, pelas entranhas dessa nossa Paulicéia Desvairada. Na mesma semana em que os estudantes comemoravam, depois de uma chuva de balas e cacetadas, a vitória sobre a reorganização das escolas proposta pelo governo, o Teatro de Arena, local histórico de resistência, foi invadido por policiais, montados em motocicletas, em perseguição a um pequeno grupo de estudantes que havia se escondido no local. É impossível não se revoltar com tamanha barbárie, e é sobre esse fato que me debruçarei adiante. Segurem, pois, os engulhos e a raiva, que o caso é, além de criminoso, de uma covardia sem tamanho.
Em primeiro lugar é preciso que eu vos diga que não tratarei o acontecido, como muitos jornalistas o fizeram, como um mero incidente. Entendo, apesar de não concordar, que muitos colegas estão submetidos às vontades escusas de seus senhores e, por isso, agem de maneira covarde e submissa. Eu, que tenho a sorte de escrever para um veículo que preza pela liberdade acima de quaisquer interesses, dou-me o direito de tratar o acontecido como acredito que deva ser tratado: um massacre!
Que a violência policial é, há tempos, algo institucionalizado na cidade de São Paulo, não é nenhuma novidade. Convivemos diariamente com desocupações trágicas, incêndios inexplicáveis e estatísticas absurdas quando o assunto é a ação policial. O general Alckmim, através de seus lacaios, vem promovendo o caos nas ruas da cidade em todo tipo de manifestação. Professores, artistas, sindicalistas; enfim, muitos já sofreram, e ainda sofrem, com a truculência da tropa de choque do governo paulistano. O diálogo foi substituído por bombas de efeito moral, a compreensão está sufocada pelo spray de pimenta e nós, a contragosto, presos na rotina de violência que faz parte do calendário de obrigações do governo paulista.
Na noite da última quarta-feira, 09, a coisa não foi diferente. O Núcleo Bartolomeu de Depoimentos realizava uma atividade pública no Teatro de Arena Eugênio Kusnet enquanto acontecia próximo dali mais uma manifestação dos estudantes secundaristas contra as medidas anunciadas pelo governo do Estado. Tudo corria normalmente no Teatro de Arena e pouco se sabia sobre o combate que era travado nas ruas próximas do edifício: estudantes e jovens simpatizantes do movimento, além de professores e funcionários públicos, eram massacrados pela ação policial que, sem mais nem menos, sacava de suas armas a fim de conter a manifestação que seguia pacífica pelas ruas da cidade.
Com o início do tumulto, a dispersão é inevitável. O corre-corre é geral, o estouro da repressão é ouvido e temido por todos os cantos. Jovens caem, tropeçam em seu próprio desespero na busca por algum lugar seguro, gritam, mesmo sem voz, pedindo socorro entre algumas palavras de ordem já desconexas. Alguns desses jovens avistam o Teatro e, sem pestanejar, correm para dentro do prédio, fugindo daqueles que deveriam defendê-los, em busca de segurança. A partir daí o que se vê é algo absolutamente inaceitável: montados em suas motocicletas invadem o hall do Teatro de Arena em perseguição aos estudantes.
Um comando de Caça, armado e mal intencionado, apavora todos que estão no local. O barulho ensurdecedor da tropa de choque motorizada confunde-se com os gritos de desespero e revolta que ecoam pelo ar, carregado pelo cheiro de sangue e covardia. A estupidez e a brutalidade policial, que aparenta desconhecer limites, leva os “homens de bem” a retirarem os garotos, sim estamos falando de garotos secundaristas, da bilheteria do teatro onde estavam acuados e, sem piedade, os espancarem ali, na frente de todos. A barbárie só teria fim quando, ameaçados pelo clamor popular, os policias fugiram dali feitos os bandidos, aqueles que não mostram a cara, que realmente são.
É preciso aqui fazer uma simples ressalva: existem, e eu sei bem disso, bons policiais e, quero acreditar, estes ainda são maioria dentro da corporação. No entanto, vivemos tempos de intolerância, tempos de tropa na rua e, atualmente, os espetáculos de terror que tem acontecido em todo o Brasil nos fazem repensar algumas questões envolvendo tanto polícia quanto o Estado.
Muitos artistas e instituições se pronunciaram sobre o caso, entre eles a Funarte, e em todos os pronunciamentos a questão da truculência policial é tratada como algo rotineiro em nosso País. Seria injusto tentar enumerar aqui todos aqueles que, de alguma forma, colocaram-se contra o ocorrido. O fato é que a invasão de um teatro, onde acontecia um evento público, por parte da polícia mostra, no mínimo, um despreparo tremendo e inaceitável, e só isso já justificaria ações efetivas em relação a todos os envolvidos no caso.
O fato é que a invasão de um teatro, onde acontecia um evento público, por parte da polícia mostra, no mínimo, um despreparo tremendo e inaceitável.
Diante da fragilidade de nossa recente democracia, é preciso abrir os olhos para acontecimentos desse tipo. Vivemos tempos nebulosos, onde o ódio emana dos poros da sociedade de diversas formas. Não são raros os casos de violência e intolerância em todo território nacional. Apesar do medo (sim, é preciso ter medo da barbárie), devemos lutar com todas as forças a fim de defender a liberdade que ainda nos resta. Não podemos correr o risco de, uma vez mais, ver a nuvem escura da repressão atormentar a nossa primavera. É significativo o massacre ter acontecido do Teatro de Arena, lugar de história gigante da resistência artística nacional, portanto, é preciso olhar com calma para a história daqueles que fizeram daquele espaço uma ode à liberdade, mesmo com a faca de generais no pescoço.
Em 1965 Guarnieri escreveu a histórica peça Arena Conta Zumbi. Em uma das músicas mais famosas desse espetáculo, canta-se que vivemos em um tempo de guerra, um tempo sem sol. Com os olhos marejados e a alma lavada, continuo dizendo não diante de todo horror que me assola. Eu sei que é preciso vencer, eu sei que é preciso brigar. Eu sei que é preciso morrer, eu sei que é preciso matar. Vivo ainda na cidade que continua no tempo da desordem e, ainda, tenho dó desse tempo tão nublado que se anuncia no horizonte de nossa pátria.
Coragem, meus amigos!