Nestes dias é impossível tocar qualquer assunto sem resvalar de cara no medo, na crise, na dúvida. Já tratamos aqui sobre os efeitos imediatos sofridos pela classe artística e trabalhadores da cena com o fechamentos dos teatros, o abaixar das lonas dos circos e o esvaziamento das ruas. Nada vai bem, nada anda legal, e o carnaval do Seu Zé, que acabou de fato, foi transformado numa tragédia fúnebre com vistas para o desencanto. O comportamento geral hoje é um misto de revolta e temor, e creio que nenhum de nós merece esse tanto de amargor no fundo da boca seca de pavor e desespero.
Tempos atrás, eu conversava com amigos que tramavam riquezas e projetos. Amigos, ao menos alguns deles, que acreditavam na possibilidade de ser artistas sem se misturar ao povo, à prole, como um anjo louco e transloucado que se doa e se devora, pouco a pouco, em benefício de um público e de um Estado preocupados em ascender através de espetáculos, e não em devorar o máximo possível de almas. Triste engano. Não percebiam, os camaradas, que vivemos em um cenário onde o improvável e o impossível caminhavam de mãos dadas. Na base da ingenuidade, do afobo, dividimos contas, bagas, garrafas; e grafamos na nossa própria face uma expectação vitral, frágil, que hoje pinga dos olhos e se espatifa no chão feito um rúptil cristal translúcido que teima em iluminar a nossa íris vermelha de insatisfação.
De todo sonho estraçalhado é possível tirar alguma lição, admito. E pensando nesse fracasso contínuo que ainda atormenta, venho aqui, munido de um cigarro e de um copo, decretar uma certeza a todos nós: o empreendedorismo, ao menos em matéria de arte, é uma mentira disfarçada de método.
De todo sonho estraçalhado é possível tirar alguma lição, admito. E pensando nesse fracasso contínuo que ainda atormenta, venho aqui, munido de um cigarro e de um copo, decretar uma certeza a todos nós: o empreendedorismo, ao menos em matéria de arte, é uma mentira disfarçada de método.
Explico-me: ao longo de diversas conversas, senti-me enganado. Pode parecer ingenuidade, mas este que vos escreve, e muitos trabalhadores Brasil afora, foram levados a acreditar que era possível, através do conhecimento de empreender dinheiro, ganhar mais dinheiro ainda. Acreditem, como nós acreditamos. Nós, artistas incuráveis, compramos a infundada ideia de que seríamos homens de sucesso, grandes empresários do teatro, se aplicássemos com labor a lógica da moeda no ventre de nossa arte.
Esquecemo-nos, no entanto, que por aqui a base de troca é a usura, e que a enganação serve tanto ao malandro usual, desprovido de recursos, quanto ao Estado, desprovido de escrúpulos, e essa é a causa do nosso abandono. O Resultado? Venderam tudo: as nossas riquezas, as nossas carnes, as nossas vidas, as nossas esperanças, o nosso coração; vocês venderam tudo.
Hoje, diante das falências e das dívidas, tendo arrancada da face a ilusória máscara do empreendedorismo, o artista, à mingua, parece deslindar, na base da dor, sua função diante do mundo: o trabalho árduo. Somos trabalhadores da cultura, nada além ou aquém disso, e pagamos o preço momentâneo de estarmos submetidos a uma secretaria omissa, um governo intolerante e uma realidade onde a cédula e as cifras servem de açoite.
É preciso organização, empatia, lógica política e muito sangue pra reconquistar o espaço perdido. Por hora, parecemos vencidos, com as portas cerradas e as redes sociais em rasas, mas é preciso repensar o papel do artista, operário do caos, nessa realidade mercadológica que compreende o mundo entre o início e o fim de uma nota de cem.
Mais do que empreender, é preciso aprender que somos uma classe como tantas outras. É preciso compreender que estamos também à deriva, como tantos brasileiros, sem botes ou salva-vidas, sem nem mesmo um boca a boca amigo pra nos dar um tanto de paixão e outro tanto de oxigênio. Precisamos de braços fortes, de pulmões plenos, ou então seremos engolidos pela procela, carregados pelas ondas e, sufocados na ponta da praia, lamentaremos o gosto salgado da espuma aveludada que a tempestade tupiniquim nos guarda enquanto recompensa e migalha nesses tempos de naufrágio.