Hoje peço licença aos caros leitores para dedilhar sobre o teclado algo que, ao menos na percepção deste que vos escreve, vai além do teatro. Algo que faz parte de cada um de nós. Uma herança viva que carregamos no sangue e da qual, por mais que alguns tentem dizer o contrário, devemos nos orgulhar. Quero falar de algo que nos inunda o espírito em tempos festivos. Daquela sensação de pertencer a algo maior que a própria vida. Falar da beleza de existir, e se reconhecer, em um mundo tão descabido e pretencioso. Falarei hoje sobre teatro, sim, mas sobre um tipo de teatro orgânico que nada tem de técnica ou de métodos. Um tipo de atuação que brota do fundo da alma cansada que, mesmo a contragosto, resiste diante de tudo e de todos.
Dedicarei esse texto a atores imprescindíveis, porém, desconhecidos. Atores natos, incorrigíveis, que insistem nessa mania de viver e seguir em frente mesmo trazendo no peito a marca fúnebre do desgosto, mas que guardam, ainda que a conta-gotas, no olhar, aquela alegria que liberta e fere. O papo de hoje, senhores, é o povo brasileiro!
Aos detratores, que por mera educação não chamarei de canalhas, que teimam em negar a beleza de nossa pátria, de nossa belíssima e complexa mistura de raças, um pequeno aviso se faz necessário: a saída para sua estupidez não é o tarja-preta, tão pouco o consolo do divã naufragado do psiquiatra. O seu único conforto, vira-latas, é o aeroporto e, para nós, isso basta!
O cenário ocasional desse texto alucinado é a boa e velha São Paulo, essa musa com seios de cimento e sorriso acinzentado. Mais especificamente a Praça da Sé. Foi ali, entre passos descompassados, que esbarrei com a arte de Sebastião, o Tião. Mas não se enganem, Sebastião poderia ser Paulo, José ou João. Aquele caboclo de riso fácil que preencheu o vazio de seu sorriso com um país atormentado – sim, Tião guarda o Brasil inteiro no oco de seus lábios – e que faz da vida um palco apagado.
Sebastião, ou Tião, é estivador desencantado. Tem os braços firmes, ainda que envelhecidos, onde guarda as memórias de sua terra marcadas na pele morena. Vem, como gosta de dizer, dos confins de nosso mapa e já andou por aí fazendo de tudo um pouco. Foi porteiro no Espírito Santo, ajudante de pedreiro em São Bernardo e outras infinidades de profissões que nada tem a ver com vocação e sim com sobrevivência. Pois bem, hoje Sebastião se diz, e eu corroboro tal afirmação, um artista de rua. E que artista!

Encontrei-o em meio a uma aglomeração de transeuntes. Curioso que sou, fui me achegando naquela multidão que tirava um pouco de seu tempo, hoje coisa escassa, para apreciar o show de Tião. Havia uma roda. Um círculo marcado com água no chão. Ali, no centro dessa roda, Sebastião lutava com um bicho misterioso. De porrete em mãos e através de versos rápidos, Tião fomentava nossa curiosidade com gemidos alucinantes de um animal perigosíssimo e imaginário. Batia naquele jornal estatelado no chão. Batia com força, com raiva, naquele pedaço de notícia que, pasmem, revidava a cada investida do nosso herói anônimo. Alguns o chamavam de charlatão. Uma senhora, entre gargalhadas, o chamava de louco. Eu simplesmente torcia por nosso personagem. Sabia que ele batia em algo que estava além daquele pedaço de papel amassado. Sebastião batia na barriga vazia que o atormenta desde pequenino. Batia na falta de amor da mãe que o abandou antes dos primeiros passos. Batia no maldito destino, esse infeliz, que transformou sua única filha, a princesa Mariana, em meretriz. Tião sabia que era chegada a hora do revide, ainda que fosse através de um pedaço de jornal velho. Era preciso estraçalhar a vida que o feria, e ainda fere, noite e dia. E então, num ímpeto de medo e alegria, Sebastião aumentou o ritmo de sua porradaria e, enfim, matou o bicho-vida.
Ali, extasiado diante daquela demonstração bruta da mais pura arte, aquela que sobe pelas entranhas, eu pude reconhecer o teatro em sua forma mais primitiva e é sobre isso que me debruçarei adiante. Guardo na memória a definição de teatro exata, segundo um professor, datada do século XVIII: “Teatro é uma arte cênico-dramática que tem por objetivo apresentar uma história fictícia, ao vivo, representada por atores com apoio ou não de cenário, figurino, adereço, maquiagem, música, etc, para uma plateia presente, que se envolve – ou não – emocionalmente com o espetáculo, mas não toma parte dele.” De toda essa etiquetação sobre a arte que escolhi, guardo até hoje essa tríade sagrada: o ator, ao vivo, e o espectador. Reconheço a arte cênica através dessa santa trindade dos palcos e quero deixar claro que essa definição, ou tentativa de, é absolutamente pessoal.
Evidente que o espetáculo de Sebastião contava com todos esses elementos, logo, Tião é um ator e, posso afirmar, da melhor qualidade. Não se espantem, as teorias sobre as origens do teatro são muitas e muitas delas se misturam com o ofício desse artista da Sé. Entre elas estão a tese dos rituais ou festas religiosas, dos contadores de história, da imitação e tantas outras que não me recordo agora. O importante é entender que a arte está sim nas grandes salas mas também ronda os becos, as esquinas sujas e diárias de nossa Paulicéia. No entanto, admirando aquela apresentação de Gala de Tião, não pude pensar em outra coisa que não o Teatro de Revista, mais especificamente o Teatro de Revista no Brasil.
Evidente que o espetáculo de Sebastião contava com todos esses elementos, logo, Tião é um ator e, posso afirmar, da melhor qualidade.
O Teatro de Revista é, por definição, uma revisão de fatos e fantasias. A história da Revista é datada do século XVIII, quando atores italianos que antes dedicavam-se à Commedia dell’Arte levaram os primeiros espetáculos do gênero (Revista) para as feiras de Paris. Segundo Neyde Veneziano, autora do ótimo livro O Teatro de Revista no Brasil – Dramaturgia e Convenções, a primeira forma desse teatro (revisão dos fatos dos doze meses imediatamente passados) não passava de uma revisão burlesca. Uma crítica de acontecimentos facilmente identificados pelo público com a intenção de apenas diverti-lo, voltada exclusivamente para o povo. Oras, a nata da sociedade, em sua maioria, não se delicia com as peripécias de Tião, pelo contrário, acham que chamar seu “charlatanismo” de arte é uma ofensa aos verdadeiros artistas, aqueles catedráticos que bebem afagos e mastigam diplomas.

Outra característica da revista é o alto grau de improvisação. Apesar de uma dramaturgia estabelecida, há, muitas vezes em excesso, improvisações que fogem completamente ao controle, de maneira poética e bela, como no caso de Sebastião. Em ambos os casos, a quarta parede, obsessão de muitos atores-doutores, é estraçalhada e há o estabelecimento de uma interação, quase uma cumplicidade, entre atores e público. Isso incomoda. Isso maltrata. Isso é a verdadeira arte que, tanto no caso de Sebastião quanto da revista, e – porque não – o circo, que apesar de fascinar e entreter também representa uma afronta, uma espécie de perigo, aos conservadores desse mundo.
As porretadas de Sebastião, que possuem extrema brasilidade, o colocam, ao menos para este que vos escreve, no mesmo hall onde figuram, por exemplo, Dercy Gonçalves e Oscarito, dois dos maiores nomes do Teatro de Revista do Brasil. Sebastião, nosso querido Tião, que ora é Paulo, ora é Maurício ou até mesmo João, é a síntese do Brasil, esse país que aprendi a amar e reconhecer no sorriso dessa gente que mesmo sufocada teima em gargalhar diante de tanta desgraça. Sebastião é artista teimoso, que ao invés de aplausos, leva no bolso os trocados que ganha com a venda de seu sebo de carneiro, uma pomada mágica que, acredito, cura todos os males do mundo.
Que o sorriso oco desse santo barroco que flana pelas ruas de São Paulo me acompanhe pelos cantos ocultos de todos os palcos. João Ubaldo Ribeiro, desbravador da alma brasileira, abre seu mais famoso livro dizendo que o segredo da verdade é que não existem fatos, só existem histórias. Aqui, com os olhos marejados e crente que vivo no maior país do mundo, eu acendo um cigarro e só consigo pensar que a saída para o teatro passa, inevitavelmente, pelo sorriso torto de Tião e sua luta diária pelos cantos desse nosso amado pardieiro.
Um viva para Sebastião é um viva para todo o povo brasileiro!