Poucos programas atualmente na grade da televisão aberta são tão infames como A Fazenda. Se os reality shows de convivência já são, para muitos, grandes programas sobre nada, A Fazenda une a essa premissa (a atração irresistível de dar “aquela espiadinha” na intimidade alheia, como dizia Pedro Bial) um elemento a mais: o fato de que a privacidade negociada aqui é a de pessoas “famosas”, mas que pertencem ao mais baixo clero da celebridade televisiva. Por isso mesmo, o programa da Record é o suprassumo da trash TV, e claramente assumido como tal (inclusive pelo próprio apresentador, Marcos Mion, que parece ali se regozijar e reviver a sua atenção no finado Piores clipes do mundo, da MTV).
Por isso mesmo, o sucesso de A Fazenda é diretamente proporcional com a escolha de seu elenco. Quanto mais avacalhado for o casting, maiores as potencialidades das narrativas a serem desenvolvidas ao longo dos meses do reality. Quando mais vulgares as pessoas ali presentes, maior a probabilidade de o programa gerar conversas engraçadas, gafes, brigas, etc. No entanto, neste texto específico, pretendo me debruçar exclusivamente sobre algo que me chamou a atenção desde o primeiro episódio: a postura do elenco masculino.
Isso significa que as mulheres de A Fazenda são “melhores” que os homens? Obviamente que não, mas aqui me atenho apenas à observação dos papéis desenhados pelos homens do grupo, que poderiam muito bem ilustrar aquilo que hoje se discute amplamente como uma “masculinidade tóxica”, ou seja, um ideal tradicional que associa a masculinidade à força, à agressividade, à contenção das emoções, como esse fosse, de fato, um homem “de verdade”. Isto é, um modelo de homem que se imagina que seja a norma há décadas, ou mesmo séculos – e que oprime, quase na mesma medida, homens e mulheres.
Assistir à cena completa no mudo é como ver uma luta entre animais numa selva que se toureiam. Os machos pulam em cima das camas, inflam o peitoral e se batem enquanto seguram as mãos nas costas, gritam nas orelhas uns dos outros, buscam se intimidar – ou fingir que não estão intimidados.
Se o tal conceito de masculinidade tóxica parece distante do leitor, compartilho aqui um exemplo transcorrido no exato momento em que escrevo esse texto. Durante uma entrevista na rádio Jovem Pan, o jornalista Glenn Greenwald foi agredido fisicamente pelo jornalista Augusto Nunes. Acabou sendo retirado do programa. Posteriormente, Nunes explicou-se ao jornal Folha de São Paulo da seguinte maneira: “eu tinha duas opções: ou reagir com altivez ou engolir o insulto. Não tive alternativa. Eu reagi como qualquer homem reagiria”. De forma muito didática, insinua-se aqui um homem oprimido pela noção de a “altivez” ou a “honra” se garante por meio da reação violenta, da intimidação. O exemplo deixa claro que uma ideia nociva de masculinidade já se naturalizou no mundo social – e, por esta óbvia razão, circula também nos produtos midiáticos.
Pois bem, voltemos ao reality show da Record. Os homens de A Fazenda são, em sua maior parte, bons exemplares desses sujeitos esmagados por sua masculinidade, uma vez que tentam exibi-la a todo instante para os pares. A cena mais sintomática de tudo isso foi uma ocorrida logo no início da temporada, envolvendo o ator Phellipe Haagensen e levando à sua expulsão. Uma complexa briga juntou praticamente todos os homens na casa num conflito difícil de explicar onde começava e onde terminava, mas cujas imagens, por si mesmas, já são suficientes para que vejamos tais sujeitos personificando, de forma instintiva, a tal postura masculina estereotipada que hoje muitos chamam de tóxica.

Comecemos pelo protagonista da treta, o ator Phellipe Haggensen (famoso por sua participação no filme Cidade de Deus). Em sua curta participação, Phellipe deu várias pistas de ser um sujeito claramente acometido por algum desequilíbrio emocional. Dentro da casa de A Fazenda, foi para cima de Hariany (ex-BBB), e um beijo desautorizado na moça levou à sua expulsão. Durante o programa, informou que daria em cima dela caso não fosse casada (dizendo, mesmo sem dizer, que o respeito que direcionava a ela era mais ao homem a quem ela “pertence”, e não exatamente a Hariany). Após expulso, fez um mea culpa declarando que “é muito mulherengo”, e que “estava carente e deu vontade de beijar” (dando a entender, de fato, que havia alguma justificativa no ato, baseado em seus fortes instintos sexuais. Quase como se fosse um deslize louvável, do qual ele se orgulha).
No entanto, o mais impressionante, a meu ver, não estava nessas declarações – previsíveis, me parece –, mas na sutileza da performance protagonizada pelos homens que brigavam, ao efeito do álcool consumido. Assistir à cena completa no mudo é como ver uma luta entre animais numa selva que se toureiam. Os machos pulam em cima das camas, inflam o peitoral e se batem enquanto seguram as mãos nas costas, gritam nas orelhas uns dos outros, buscam se intimidar – ou fingir que não estão intimidados. As mulheres, conforme esperado, tentam controlar a “manada”. São ali coadjuvantes de uma cena selvagem.
Tudo muito constrangedor, a meu ver, e que me causou muito espanto ao assistir, às claras, homens se comportando de tal forma que, em certo aspecto, beira o primitivo. Talvez essa tenha sido a cena mais marcante de toda A Fazenda, mas ao longo da temporada, quase todos os homens do casting protagonizaram algum momento que evidenciava uma masculinidade nociva. Vide, por exemplo, o pavio curto e o desrespeito de Diego, que chamou a “roceira” Andréa Nóbrega de velha, mais de uma vez, dizendo que ela tinha idade para ser sua avó (Andréa tem 51 anos e Diego tem 37); o ego ferido do comediante Vinicius, o “Gugu”, que passou quase toda a temporada escapando dos conflitos pelo humor, mas teve seu ego facilmente devastado ao ser indicado para a roça; ou a infantilidade de Lucas, apelidado pelos próprios colegas de “bebezão”, por motivos óbvios. Todos os homens com algum déficit na maturidade esperada para suas idades, e que protagonizam o tempo todo posturas do estilo “eu sou assim mesmo” e “tenho o direito adquirido de falar qualquer coisa que vier à minha cabeça”.
E tudo isso que aqui descrevo significa alguma coisa, ou tem algum efeito pedagógico na população que assiste A Fazenda? Esperemos que, no mínimo, essa masculinidade divulgada na A Fazenda sirva para gerar tema de conversação – que, no fim das contas, é a função primordial da televisão.