Cenas interessantes emergiram da esfera do “mundo da televisão” esta semana: durante uma edição do programa A Tarde é Sua, da Rede TV!, a apresentadora Sonia Abrão reservou seis minutos para criticar o texto do jornalista Mauricio Stycer, no qual explicitou a super exploração da morte do sertanejo Cristiano Araújo. Pauta de (até então) ao menos 8 edições consecutivas do programa, o crítico sistematizou no seu texto os temas pelas quais a tragédia se desdobrou – forçosamente – em abordagens diversas, muitas de baixíssima relevância.
Há algo de muito interessante neste “embate”, que se evidencia, sobretudo, nos argumentos de Sonia Abrão para desqualificar a visão do jornalista. Reproduzo suas falas (veja o vídeo completo abaixo), conforme registradas no próprio blog de Mauricio Stycer. Segundo a apresentadora, a exploração exacerbada, na verdade, corresponderia a uma “homenagem” e ao “atendimento a um anseio do público”, como “maneira de amenizar o luto”. Sua fala também listou suas credenciais e de sua equipe: falando diretamente ao crítico, comparou o conhecimento de televisão deste jornalista à do diretor do programa. Finalizou ainda com a seguinte frase, que merece destaque: “você não sabe mais que eu, como apresentadora, você não sabe mais do que nossa equipe. E você não sabe, porque está com viseira, qual é realmente o anseio do público”.
É um episódio de absoluta riqueza para pensarmos na relação entre a crítica jornalística e a vida profissional diária, daqueles que, como sugere Sonia Abrão, entenderiam o público. Afinal, qual a função de espaços como esta coluna da Escotilha e de tantos outros profissionais que se propõem, como carreira, a pensar analiticamente o que fazem os meios de comunicação? Para quem falamos, afinal – para nós mesmos (como talvez dê a entender a apresentadora do A Tarde é Sua)? Para os espectadores, para que possam se tornar mais exigentes quanto àquilo que assistem? Para os próprios profissionais, para que repensem suas práticas?
Há um equívoco crucial na defesa de Sonia Abrão, que se salienta no comentário de que o crítico não veria a realidade por usar uma “viseira”. A colocação insinua a visão – típica do senso comum, diga-se – de que o crítico se mantém em uma posição distanciada da realidade e do público, isolado por uma “torre de marfim” (como se dizia antigamente), diametralmente oposta à posição do profissional, “daquele que faz”. Daí para se reproduzir a máxima batida de que o crítico é “aquele que queria fazer, mas não sabe” é um pulo.
“Não deixa de ser um sintoma muito positivo ver a apresentadora comentando, ou rebatendo, o texto do crítico em seu programa televisivo.”
Por outro lado, o posicionamento traz uma reflexão interessante sobre a função da crítica, que sempre se confronta com esta dualidade das “coisas como são” e “como elas deveriam ser”. Ou seja, muitos dos que reclamam das leituras feitas pelos críticos talvez se manifestem dizendo coisas como: “experimente estar no meu lugar, com as condições de trabalho que eu tenho [entra aqui o vasto rol de argumentos: baixos salários, muitas coisas para fazer, cobranças comerciais pela audiência, falta de bons equipamentos, etc.], e tente fazer melhor!”. Invalidam a crítica por ela, muitas vezes, negligenciar o processo, o modus operandi, as forças maiores que as (boas) vontades dos profissionais. Têm certa razão ao dizer isso.
Porém, a fala de Sonia Abrão se torna mais perigosa, a meu ver, ao defender o seu tipo de jornalismo (por falta de melhor palavra que o classifique) na premissa da compreensão do “anseio do público”, de entender melhor as necessidades de sua plateia (não por acaso, o programa se chama “a tarde é sua”) do que aqueles que a criticam. É o típico discurso que busca legitimar todos os excessos cometidos no intuito de suprir uma necessidade não atendida, por exemplo, pelo poder público. Note-se, por exemplo, a vasta quantidade de programas policiais que se fundamentam na ideia de que “confortam” uma população cansada e esquecida – pela polícia, pelos governos, pelas instituições, etc. – apagando aí a constatação de que não é a exploração dos dramas que ocasiona a solução dos problemas.
Neste sentido, o “conflito” Abrão vs. Stycer é muito útil para evidenciar que, afinal, crítica e prática não são instâncias isoladas e só fazem sentido quando se oxigenam mutuamente. Não deixa de ser um sintoma muito positivo ver a apresentadora comentando, ou rebatendo, o texto do crítico em seu programa televisivo. Sinal que, de fato, a crítica está sendo útil e está sendo lida por aqueles que aborda. Não poderíamos desejar nada melhor. Quem ganha é o público.
Por fim, uma reflexão: o que justifica os longos anos no ar de programas ao estilo de A Tarde é Sua que esticam tragédias cotidianas, muitas vezes falando sobre nada, e noutras mais prejudicando a população do que prestando um serviço a ela? Creio que há uma espécie de guilty pleasure que nos atrai, quase sob hipnose, para um programa que coletivamente é assumido como ruim. Lembro-me do clássico “Sobre a Televisão”, do sociólogo Pierre Bourdieu, que em certo momento se pergunta se a premissa de que somos vítimas da televisão não esconde o quanto também somos cúmplices. É algo a se pensar.
ESCOTILHA PRECISA DE AJUDA
Que tal apoiar a Escotilha? Assine nosso financiamento coletivo. Você pode contribuir a partir de R$ 15,00 mensais. Se preferir, pode enviar uma contribuição avulsa por PIX. A chave é pix@escotilha.com.br. Toda contribuição, grande ou pequena, potencializa e ajuda a manter nosso jornalismo.