Muito se falou sobre a baixa qualidade da edição de 2019 do reality show Big Brother Brasil. Da minha parte, confesso que desenvolvi um interesse próximo ao zero por essa temporada, o que me impossibilitou de fazer mais análises ao longo destes meses.
Os motivos já foram listados em diversos textos: personagens repetitivos, pessoas que pareciam muito com os participantes de outras edições; uma dicotomia artificialmente ajustada para reproduzir a cisão do mundo aqui fora (a divisão entre direita e esquerda, coxinhas e mortadelas, entre o “politicamente correto” e os que sentem que tiveram seus direitos violados); e, acima de tudo, a ausência de conflito entre estes participantes de pouco destaque.
É uma espécie de máxima do senso comum dizer que a grande graça de assistir ao BBB são os “barracos” – o que se torna, quase sempre, numa forma de criticar o coletivo, equivalendo o programa a um entretenimento baixo, no sentido de dizer coisas do tipo “o povo gosta mesmo é de barraco”.
Ora, o que se chama de barraco é outra forma de se referir ao conflito que é essencial a qualquer trama. Para que uma história possa ser contada de uma forma envolvente, é preciso que seja bem construída, com uma trama clara e reconhecível, que parta de algum lugar para chegar a outro.
É claro que BBB se fundamenta na perspectiva de que mostra pessoas reais, e não atores – mas vale dizer que todos os seres humanos são “atores”, na medida em que desempenham papeis a todo momento, e trocam de “figurino” com uma velocidade bem maior do que gostariam de imaginar.
É claro que BBB se fundamenta na perspectiva de que mostra pessoas reais, e não atores – mas vale dizer que todos os seres humanos são “atores”, na medida em que desempenham papeis a todo momento, e trocam de “figurino” com uma velocidade bem maior do que gostariam de imaginar.
Em outras palavras, mudamos do filho para o colega, do funcionário para o amante, do pai para o amigo, e todas estas “roupas” nos cabem sem grandes problemas, por mais diferentes que sejam.
No BBB, que é um grande turismo da interação humana, estamos querendo ver justamente as pessoas atuando, intercalando entre aquilo que querem ser e aquilo que são – a diversão do programa é justamente conseguir captar estes respingos de realidade que aparecem de quando em quando.
Na edição 19, houve um esforço em agradar uma opinião pública que cobrava diversidade, ou representatividade, uma das palavras do momento. O elenco envolveu um maior número de negros que o costume, além de participantes que assumiam publicamente sua homossexualidade. Uma mulher de mais idade (Tereza, de 52 anos) esteve presente durante boa parte da temporada. E o costumeiro elenco “maromba”, já tradicional, compôs a maior parte do grupo.
No entanto, a diversidade (de estilos de vida, de visões de mundo, de realidade social) pareceu não ter dado resultado, uma vez que a maior parte do programa não se desenrolou, não culminou em uma trama capaz de convencer o público. Conforme pontuou o crítico Maurício Stycer neste vídeo, BBB 19 não não conseguiu destacar personagens, nem vilões, nem mocinhos. É quase como se a situação política do país, fortemente polarizada, tivesse respingado num desejo de sossego entre as interações – a turma do “deixa disso”, da defesa da empatia com o outro, deu a tônica da edição.
Se alguns participantes pareciam opostos (como o grupo de Gabriela e Rodrigo e o grupo das loiras Hariany e Paula), esta oposição não resultou em confrontos ou mesmo em diálogos interessantes. O politizado Rodrigo, por exemplo, foi considerado por muitos como uma das grandes decepções do programa, exatamente porque havia uma alta expectativa em torno dele – talvez a de que se tornasse um novo Jean Wyllys, ou seja, um intelectual altamente carismático e magnético, que passaria mensagens didáticas, como verdadeiras aulas, ao grandioso público televisivo.
Ocorre que Rodrigo se recusou a desempenhar esse papel, e quebrou a regra número 1 do programa, que é, justamente, a difícil arte de conciliar convivência e conflito, numa sutil mas necessária medida. Em entrevista, o participante assinalou uma resposta interessante: “a gente é muito mal-acostumado com o silêncio. O silêncio possibilita a escuta. E ninguém escuta mais ninguém.
Então, quando tem alguém que para e te ouve, causa estranhamento. A gente está acostumado a ser silenciado”. Faz todo sentido, e seu raciocínio está correto, mas esquece de um detalhe: o BBB é a narrativa do grito, do ruído, da entropia, não da delicadeza, da estética, do gracioso. O silêncio é cinematográfico; a televisão é barulhenta.
Em suma, o BBB não é local dos “bonzinhos”, no sentido dos avessos aos embates, uma vez que a própria televisão é um veículo que se alimenta da alta visibilidade a todo custo, daqueles que conseguem se expor (vale lembrar dos antigos brothers muito queridos, que eram bastante propensos ao embate: Ana Paula Renault no BBB 16, Emily no BBB 17, e mesmo a doce Gleice no BBB 18).
Por isso mesmo, desde o primeiro episódio, o único destaque do elenco já ficou evidente: os holofotes seriam de Paula, mulher heteronormativa, de voz fina e opiniões incisivas, que expressavam racismo e preconceito religioso. Não à toa, ela sagrou-se vencedora e entrou no rol dos piores vencedores de BBB.
Esperta, Paula já entrou no programa tentando se colocar como peculiar ou inusitada, ao falar (e durante toda a temporada) de seu animal de estimação, uma porca chamada Pippa. Capaz de levantar ódio, ela se tornou um bom personagem por ser capaz de levantar temas de conversação para além do próprio programa (muitos adoraram falar mal de Paula depois que desligavam a televisão – de alguma forma, essa maledicência coletiva era a única diversão que restava do programa).
O mais curioso, me parece, é que tudo isso (a baixa expressividade do elenco e as más decisões do público, que votou para eliminar participantes que poderiam ser relevantes à trama) tenha acontecido 17 anos depois da estreia do programa no Brasil – somos, praticamente, experts em BBB, mas ainda assim não sabemos votar (no sentido de colaborar para estabelecer uma boa narrativa) nem os participantes sabem bem como se comportar. E esse talvez seja, por fim, o grande trunfo do BBB e o segredo de sua longevidade: a capacidade de dar errado, exatamente quando já acreditávamos que sabíamos tudo.
Por fim, fica a reflexão: se o BBB só faz sentido à medida em que reflete as convicções do seu público, vale a pena pensar sobre como a permanência de pessoas “más”, como Paula, pode dizer muito sobre os votantes. Por que a defenderam e em que sentido se veem compensados com a vitória de uma mulher nacionalmente apontada como racista e preconceituosa? Talvez BBB 19 fale mais sobre nós do que gostaríamos de reconhecer.
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