Muita gente hoje se vangloria de não assistir à televisão, e de nem ao menos ter um aparelho de TV em casa. Embora não seja exatamente uma novidade, essa anunciada “morte da TV” (que nunca ocorre) serve para fazer pensar: em épocas de streaming e YouTube, o que ainda resta de valor nesse velho meio de comunicação de massa?
Minha tentativa de resposta a essa dúvida sempre envolve um quesito: o caráter hipnótico da televisão ao vivo. É algo que a internet, mesmo nas lives (o formato que mais bombou agora na quarentena, especialmente por sua facilidade de transmissão), não consegue se equiparar a isso. Isso se dá porque a televisão, enquanto veículo, se sustenta muito na sua cara produção, consequentemente, na formalidade que envolve qualquer gravação. Por consequência, qualquer coisa que sai do script televisivo tem sempre um peso a mais.
Na semana passada, a participante Carla Diaz foi a eliminada do Big Brother Brasil 21. Como parte de sua “via crucis” pós programa, precisou participar, na quarta pela manhã, do programa Mais Você, no qual foi entrevistada por Ana Maria Braga. Carla – que é atriz e ficou conhecida por sua participação de novelas, muitas delas, em papéis infantis – ficou envolvida no programa por uma trama de casal. Ela “namorou” o participante Arthur, e seu relacionamento oscilante foi acompanhado por todo o Brasil.
Muitos espectadores decodificaram o relacionamento de Carla e Arthur como “abusivo”- palavra que, como alguns críticos ressaltaram, pode ter sido mal-usada. Isto porque chamar esse romance de abusivo talvez banalize o conceito: basicamente, o que vimos foi uma dinâmica entre uma mulher carente e um homem relativamente desinteressado, além de mergulhado num machismo estrutural, que fazia com que qualquer pedido de desculpas a ela se tornasse um sacrifício digno das tragédias gregas. Além disso, Arthur claramente destinava uma fatia muito maior do seu afeto ao seu brother Projota (confirmando aquilo que se chama de bromance, um “romance” fraternal entre homens).
Tudo isso foi acompanhado ao vivo por uma multidão de pessoas, que deram seus pitacos em suas casas e nas redes sociais – afinal, há um prazer inenarrável em avaliar o relacionamento alheio. É para isso, afinal, que Carla, Arthur e todos os outros brothers e sisters toparam fazer parte do elenco do BBB21: para que se dispusessem a se tornar objeto de conversação sem fim para a audiência desse lado de cá. Como sempre comento nessa coluna, são sujeitos que venderam seus corpos e suas almas a esse fim.
Mas voltemos à participação de Carla Diaz no Mais Você. Nessa entrevista (cujo mote é sempre colocar o participante em constrangimento, no sentido de confrontá-lo com as cenas vivenciadas por ele e muitas outras que, por não ter o poder da onisciência, ele não viu), Carla e Ana Maria Braga conversaram, sobretudo, sobre a trama principal que envolvia a atriz: o relacionamento com Arthur.
O que se viu ali foi o mais puro suco do constrangimento – algo que só a TV ao vivo ainda é capaz de nos oferecer. A entrevista conduzida por Ana Maria Braga foi totalmente diferente da feita com Karol Conká, a rapper que bateu recordes de rejeição do programa. Naquele encontro, Ana Maria, provavelmente sensibilizada com o que Karol enfrentaria, foi mais suave e mesmo empática. Parece ter caído a ficha que não cabia a ela chutar cachorro morto, como se diz no popular.
Se Arthur foi um péssimo namorado para Carla (e não há dúvidas sobre isso), vale a pena questionar aqui: por que há algum prazer em ver uma mulher sendo constrangida em público e tendo que se posicionar sobre atitudes que nem foram tomadas por ela?
O tom da entrevista com Carla Diaz foi totalmente diferente. Ouso dizer que havia ali pistas de que Ana Maria Braga já tinha algum problema anterior com a jovem atriz, o que se evidenciou num comentário que abre a entrevista, quando Ana diz que, mesmo tendo participado de um quadro culinário dentro do seu programa, Carla não aprendeu a cozinhar. Esse comentário aparentemente bem-humorado serviu já para temperar o que viria na próxima hora.
E o que se viu na sequência? Basicamente, um show do constrangimento público de uma mulher que confronta outra a ter que justificar porque embarcou num relacionamento claramente furado. A máquina da Globo é posta em ação: Carla é “convidada” a assistir a uma série de vídeos em que Arthur, sem que ela estivesse presente, fala coisas que impactariam na percepção que tinha dele (o que me levou a pensar: quantos relacionamentos sobreviveriam se tivéssemos o poder de ver o que os cônjuges falam quando não estamos presentes?).
Pois bem, se Arthur foi um péssimo namorado para Carla (e não há dúvidas sobre isso), vale a pena questionar aqui: por que há algum prazer em ver uma mulher sendo constrangida em público e tendo que se posicionar sobre atitudes que nem foram tomadas por ela? Há aqui uma espécie de responsabilização da mulher sobre aquilo que ela passa? De forma muito oportuna, a jornalista Jess Carvalho fala sobre revimitização, ou seja, ao ato de colocar uma mulher que já foi destratada a ser novamente revitimizada – no caso aqui, pela vergonha de ter passado por isso. Infelizmente, o que vimos no Mais Você foi apenas crueldade e falta total de empatia – como se todos nós, homens e mulheres, não estivéssemos sempre propensos a sermos tratados com pouca consideração por nossos pares (e propensos a fazer a mesma coisa, vale dizer).
No entanto, creio que podemos dizer aqui que a grande graça dessa entrevista, no fim, foi a reação de Carla Diaz. Crescida em frente às câmeras, nessa uma hora de Mais Você, Carla Diaz se revelou uma personagem muito melhor do que a apareceu nos seus meses de participação no BBB21. Carla negou-se a se colocar no papel da mulher enganada e, mais que isso, a ter se justificar por suas ações. Em várias respostas deixou bem claro: quem precisa responder sobre isso é ele, não eu (Ana Maria, infelizmente, continuou insistindo no constrangimento).
Por fim, a cereja do bolo: ao ser instada a fala sobre um vídeo em que Arthur falava mal dela, Carla simplesmente ficou em silêncio, com cara de deboche. Ficamos, durante longos segundos televisivos, vendo Carla Diaz e Ana Maria Braga dividindo a tela, sem falar nada, e ouvimos os barulhos da mastigação da atriz, que tomava café da manhã. Um verdadeiro ASMR na TV ao vivo feito por uma VTzeira profissional.
Maravilhosamente, a participação de Carla Diaz no Mais Você nos traz importantes lições. Eis algumas: 1. Nada mais irresistível que na televisão que o ao vivo e a possibilidade de que, em apenas um segundo, desmoronar uma performance do que se espera. 2. Por vezes, o melhor do BBB ocorre fora dela, e é por isso que esse programa é tão interessante. 3. Mulher, ao ser constrangida, não caia na armadilha: não justifique as bobagens alheias. Deixe que os idiotas falem sozinhos.