Um episódio típico do programa Casos de Família, do SBT, exibido às tardes de segunda a sexta. O tema é “Você não cuida nem de você mesma e quer ter mais filhos?”. Várias mulheres são confrontadas por parentes. Uma delas tem cinco filhos e quer ter o sexto, pois ainda não concebeu a tão sonhada menina. Outra moça acha que está grávida, mas não tem certeza de quem é o pai (quando questionada, seu raciocínio é lógico: “eu posso não ter certeza quem é o pai, mas tenho certeza de quem é a mãe”). Mediando o programa, a apresentadora Christina Rocha e a psicóloga Anahy D’Amico tentam explicar as irresponsabilidades agregadas no ato de gerar filhos sem pensar nas condições para criá-los. Há pouca certeza sobre a eficácia de suas considerações – o quanto, de fato, as mulheres repensarão suas certezas depois de participar do programa.
Há dez anos, o programa Casos de Família passava ao comando de Christina Rocha. Cinco anos antes, em 2004, a atração tinha entrado na grade do SBT tendo como apresentadora a jornalista Regina Volpato, explorando a clássica abordagem da “terapia na TV”: pessoas normalmente muito simples iam ao palco para narrar problemas variados e recebiam conselhos e consolos da terapeuta Anahy (que participa do Casos de Família desde o início). Tudo era conduzido sob a escuta terna e firme de Regina, que protagonizava assim um programa respeitoso, acolhedor, quase sempre muito comovente.
Mas aí Sílvio Santos achou que faltava barulho no Casos de Família. Em 2009, o programa passa a ser encabeçado por Christina Rocha, que já era conhecida no SBT por participações em diversos programas (um deles foi a apresentação do lendário Aqui Agora, o famoso telejornal popular da emissora). A intervenção comedida e generosa de Regina Volpato deu lugar a um programa estridente, cômico, algo sensacionalista, mais próximo do grotesco corporal assistido em atrações como o Programa do Ratinho.
Se julgarmos sucesso por meio de repercussão e audiência, é possível dizer que a decisão de Sílvio Santos foi acertada. O programa virou imediatamente um exemplar incomparável da trash TV, do pior que as emissoras são capazes de produzir. Alvo de desconfiança sobre a veracidade dos conflitos retratados, Casos de Família se tornou uma espécie de versão do SBT do programa de João Kleber, cujos barracos inverossímeis no quadro “Teste de Fidelidade” o tornou uma atração cult justamente por sua baixa qualidade. Alguns jornalistas, inclusive, chegaram a contabilizar a repetição de figurantes em diferentes edições do Casos de Família. Passou-se a ver o programa para dar risada, não para entender alguma coisa acerca dos problemas tratados.
Casos de Família tornou-se, aos poucos, um programa capaz não mais de rir sobre as classes populares, mas rir (e chorar) com elas.
Os anos se passaram – mais especificamente, uma década – e não podemos dizer que Casos de Família tenha mudado em sua essência. A repercussão só aumentou: o programa passou a gerar constantemente alguns dos melhores memes que conhecemos (o mais conhecido talvez seja a montagem totalmente nonsense que junta um moço fazendo um espacate com a música “Sweet Dreams”, do Eurythmics).
Mas, para além da superfície, a verdade é que algo mudou. Casos de Família tornou-se, aos poucos, um programa capaz não mais de rir sobre as classes populares, mas rir (e chorar) com elas. Ainda que continue essencialmente cômico, virou uma das poucas atrações da televisão brasileira que conseguem, de fato, dar voz a uma população que, quando aparece noutros programas – por exemplos, nas novelas – é de forma estereotipada, “domesticada”, tornada leve, bem-humorada.
Em outras palavras, Casos de Família tomou como seu diferencial o fato de que fala com o povo, e não apenas sobre ele. E não incorre à tentação de “domá-lo”, submetê-lo a estéticas sofisticadas. O programa dá espaço para que as pessoas tentem explicar o seu entorno sob suas próprias lógicas – mesmo que seja para argumentar porque é possível desejar mais um filho quando você já tem outros cinco que mal consegue dar conta. À classe média, tão alheia a esse tipo de problema, só resta a condição de assistir e tentar entender.
Parte dessa estética se dá justamente pelas intervenções histriônicas de Christina Rocha. Autêntica no papel que desempenha, Christina não se leva muito a sério, e, desta forma, consegue estabelecer um real diálogo com as pessoas que vão até o programa. Fala como uma igual, e não de cima para baixo, como alguém que tenta ensinar alguma coisa a alguém que sabe pouco. E essa postura, além de fundamental, é complementada pela seriedade com que a psicóloga Anahy D’Amico analisa os casos que chegam até ali.
Por fim, teço mais dois comentários acerca do programa. O primeiro é que o Casos de Família se tornou um espaço de resistência dentro do SBT para abordar temáticas como a violência contra a mulher e para inserir pautas que falem sobre homofobia. Em uma emissora que tem assumido uma postura cada vez conservadora, isso não é pouco – é, de fato, uma forma de rechaçar os retrocessos que acometem o país. E o mais importante: tais temas são colocados de forma muito simples e acessível, para que todos possam participar do debate.
O último ponto é uma constatação: se, em Casos de Família, tudo for fake, montado, se todos os participantes forem contratados, pouco importa, porque ele segue cumprindo com sucesso o objetivo de transpor a realidade de uma camada da população a quem se reserva a invisibilidade. E isso não é pouca coisa.