Falecido em 2021, Gilberto Braga foi um autor de novelas proeminente, cuja obra televisiva (iniciada nos anos 1970) configura como paradigma do gênero até hoje. É na história deste “escritor de folhetins”, como Braga um dia se definiu, com certo desdém, que o jornalista Maurício Stycer mergulha em Gilberto Braga – O Balzac da Globo, obra lançada pela Intrínseca no início de 2024.
Com longa carreira no jornalismo e na crítica de televisão, Stycer tem se dedicado, nos últimos, ao aprofundamento do registro histórico da TV brasileira: já publicou obras sobre Silvio Santos e Jacinto Figueira Júnior, conhecido como “o Homem do Sapato Branco”. No livro sobre Gilberto Braga, ele encara um desafio novo: o livro estava sendo produzido pelo jornalista Artur Xexéo, que faleceu prematuramente em junho de 2021. Convidado a dar sequência à obra, ele logo se depara com um novo desafio: a morte do próprio Gilberto Braga, em outubro do mesmo ano.
Em entrevista exclusiva à Escotilha, Maurício Stycer fala sobre como lidou com este processo de trabalhar a partir da pesquisa de um colega e de que forma o sucesso das obras de Gilberto Braga pode refletir o gosto dos brasileiros por telenovelas.
Escotilha » Um aspecto muito interessante do livro é a franqueza com que você consegue abordar a trajetória do Gilberto Braga, inclusive com detalhes bem pessoais sobre o seu casamento e alguns dramas envolvendo seus familiares. Você já fez outros livros contando a vida de personalidades televisivas (Silvio Santos e Jacinto Figueira Júnior), então queria que comentasse se o processo de produção dessa obra foi muito diferente das outras.
Maurício Stycer » A pergunta me faz pensar sobre o fato de os três livros pertencerem a gêneros diferentes. Olhando hoje, vejo que o livro do Silvio Santos é muito mais um perfil analítico dele. A obra não traz grandes revelações, mas sim uma análise relativamente sólida feita a partir dos fatos conhecidos sobre a vida do apresentador.
Já o livro do Jacinto Figueira Júnior é de outro gênero, mais próximo da grande reportagem, ou então um perfil biográfico. Digo isso porque havia poucas fontes sobre o início da vida do Jacinto, os seus primeiros vinte anos, o que me impede de classificar o livro como uma biografia. Faço uma apuração sobre alguns aspectos da infância dele, o que satisfaz quem tiver um interesse médio sobre o assunto, mas quem quiser saber muito sobre a vida do Jacinto certamente ficará frustrado.
Diria que o livro do Gilberto Braga é uma biografia tradicional, que conta uma história linear de certa forma, que resgata episódios de todos os momentos da vida dele e explica sua origem e seu passado. Então os três livros resultaram bem diferentes, pensando em gêneros literários, por conta dos caminhos que eles acabaram tomando.
Outro aspecto curioso da produção de Gilberto Braga – O Balzac da Globo é o fato de que você entrou no processo com ele já andando, uma vez que a biografia estava sendo escrita por Artur Xexéo. Curiosamente, foi Gilberto Braga que inseriu na Globo a ideia da produção colaborativa em novelas. Como foi criar o livro partindo do trabalho de outro jornalista? Isso mais ajudou ou atrapalhou?
Interessante pensar nessa coincidência do processo colaborativo inventado por Gilberto Braga e no que foi utilizado na produção da biografia dele. É legal realçar qual foi a reação do Boni quando o Gilberto pediu ajuda para escrever Água Viva, sua segunda novela das oito. O executivo respondeu algo como: “nunca me pediram isso, mas se tivessem pedido antes, eu teria autorizado”.
Ou seja, Boni sacou, assim como Gilberto, que novela é um processo muito industrial. Embora tenha uma marca autoral, envolve também muito trabalho pesado. Então fazia sentido pensar que um autor poderia contar com a ajuda de outros para escrever uma novela, e que isso não descaracteriza o fato de ele ser o autor principal.
“O maior desafio na hora de produzir Gilberto Braga – O Balzac da Globo foi partir do trabalho de outro jornalista, que eu não só conhecia, mas admirava muito”
Maurício Stycer
De fato, o maior desafio na hora de produzir Gilberto Braga – O Balzac da Globo foi partir do trabalho de outro jornalista, que eu não só conhecia, mas admirava muito. No livro, eu conto que aceitar esse desafio foi uma forma de homenagear o Xexéo, implicando em todas as dificuldades que essa decisão poderia acarretar.
Quando entrei no projeto, Xexéo já tinha feito uma parte muito importante, que foram as dez sessões de entrevistas com Gilberto. Xexéo planejava voltar a entrevistá-lo, mas não teve tempo. Também já tinha feito entrevistas com cerca de 20 pessoas que o conheceram. Eu voltei a várias dessas pessoas porque queria saber mais coisas e esclarecer dúvidas que surgiam. E entrevistei outras 50 pessoas em busca de mais informações e mais detalhes de diferentes histórias narradas.
O fato de eu entender o livro o tempo todo como uma homenagem também ao Xexéo talvez tenha me limitado um pouco, pois eu estava sempre pensando em qual o caminho que ele tomaria em um determinado ponto, se escreveria tal coisa, faria um capítulo específico, etc.
Não diria que isso me atrapalhou, mas sim que foi uma particularidade do processo, pois não é algo tão comum uma biografia escrita a quatro mãos, em momentos diferentes. Foi uma circunstância da vida que levou isso a acontecer, achei fascinante encarar este desafio e fiquei muito feliz com o resultado final.
Toda a carreira do Gilberto Braga é marcada por um certo paradoxo de ele ter sido um autor de novelas populares, mas com referências vindas da alta cultura. No livro você conta que ele tratava isso até com certo ar blasé, mas que chegou a ensaiar uma candidatura à Academia Brasileira de Letras. Pela sua pesquisa quanto à história dele e em entrevista com pessoas que conviveram com ele, qual sua avaliação? Como acha que essa dicotomia entre popular e erudito se resolvia para ele?
Antes do Gilberto começar a escrever para a televisão – quando ainda era um crítico teatral e professor de francês, e estava insatisfeito com ambas as ocupações – certamente ele sonhou que um dia poderia ser um diretor de cinema ou autor de teatro, com base de tudo que consumiu culturalmente ao longo da vida. Ele era um francófilo, com muito conhecimento de cinema e literatura, e que se aprofundava nos assuntos.
Quando Gilberto começa a trabalhar em TV, ele confessou que mal assistia à televisão. Chegou a declarar que nem sabia como escrever uma novela. Então eu acredito que podia ser sincero o desdém que ele manifestou algumas vezes sobre ser um autor de televisão.
Mas, com o passar do tempo, quando ele entende que o ofício de escrever para televisão tinha um alcance absolutamente extraordinário, muito maior que o de um filme ou uma peça de teatro, e passa a ser bem remunerado para fazer isso, Gilberto claramente começa a entender que seu trabalho não era uma coisa menor. Muito pelo contrário: ele enxerga o tamanho da responsabilidade e a importância de escrever uma novela.
Penso então que, a partir de um certo momento, muitas das declarações que ele deu nos anos 80 e 90 sobre essa questão podem ser classificadas como “pose”. Um exemplo é uma história que conto no livro de quando o Boni o levou para jantar em Nova York no restaurante de um chef francês super famoso. Quando Boni o apresentou como um autor, ele respondeu que era apenas um escritor de folhetins. Isso certamente era pose.
Todo esforço que ele fez para se candidatar à Academia Brasileira de Letras deixa claro que Gilberto tinha o próprio trabalho em alta conta. Ele sabia que o que estava fazendo era digno e importante, e que merecia ter reconhecimento. Penso que ele nunca perdeu o interesse pela chamada alta cultura, mas não desprezava a comunicação popular que foi o seu ofício.
A premissa da proximidade da produção do Gilberto Braga com Balzac é muito interessante, e foi defendida por ele mesmo. Eu queria pensar um pouco na questão do realismo social nas novelas, que foi uma marca da maior parte da obra dele. Você acha que isso foi determinante para o sucesso de suas novelas – por exemplo, se ele trabalhasse mais em uma chave mais fantasiosa ou lúdica, não teria recebido o mesmo reconhecimento? E o que isso fala, de modo geral, sobre o gosto brasileiro por novelas?
Quando a gente analisa o período de formação do núcleo de dramaturgia da Globo, que vive seu auge entre as décadas de 1970 e 1990, percebe que o Boni e o Daniel Filho tiveram a preocupação de montar um timede autores bastante eclético, contendo os mais variados tipos de texto.
Essa pergunta me leva a um tipo de especulação que é difícil de fazer. Se formos pensar, por exemplo, na obra do Aguinaldo Silva, do Dias Gomes, do Lauro César Muniz e da Janete Clair, entre tantos outros que escreveram neste período, vemos que cada um foi por um caminho. Uns se direcionaram para o puro melodrama, como a Janete, enquanto o Dias Gomes ia pela linha política e do realismo fantástico, Aguinaldo Silva andava por trilhas mais lúdicas e fantasiosas, Manoel Carlos tinha uma pegada mais próxima da do Gilberto, e assim por diante.
Então é difícil dizer se o estilo do Gilberto Braga foi determinante para o seu sucesso, pois todos estes autores que citei conquistaram excelentes resultados com seus estilos e gêneros. O que talvez se possa pontuar é que Gilberto foi um mestre dentro do tipo de novela que ele escreveu, com retratos muito acurados e críticos da elite carioca e da classe média da zona sul do Rio. Outros, que posteriormente tentaram emular este estilo, talvez não tenham conseguido fazer isso tão bem.
De fato, o grande talento dele foi a capacidade de representar estes universos nas novelas e fazer com que este próprio público se enxergasse nas obras. Isso criava uma situação boa para a Globo, pois Gilberto trazia uma audiência de classe A e B que interessava à emissora. A repercussão da novela Água Viva é curiosa nesse sentido, pois ajuda a visualizar esse processo: os ricos se reconheciam nos personagens, mas não se sentiam “vítimas” da crítica que o Gilberto fazia.
A sacada de Daniel Filho e Boni ao armar esse time foi justamente o de compreender que o gosto do público de novelas é muito variado. Se a Globo produzisse todas as novelas no mesmo gênero, certamente não faria o sucesso que fez. Um dos panos de fundo deste livro é, justamente, documentar o processo de construção da dramaturgia da emissora no período em que Gilberto atuou.
No livro, você aborda a ideia de que as novelas de mais sucesso do Gilberto são as que conseguiam capturar bem o espírito do seu tempo. Agora estamos diante da notícia de um remake de Vale Tudo. Como você encara essa perspectiva de refazer uma novela de 1988, marcada pelo contexto político da época, nos dias atuais? Parece uma boa ideia?
Acho que Vale Tudo e a minissérie Anos Rebeldes viveram um momento mágico de capturar o espírito do seu tempo. Por mais que quase todo autor tente fazer isso, é muito difícil conseguir que isso aconteça.
Por isso mesmo, pensar num remake atualizado de Vale Tudo é uma grande questão. Se a gente observar as adaptações que Bruno Luperi está fazendo das novelas do avô, Benedito Ruy Barbosa (Pantanal e Renascer), notamos que ele atualiza as histórias e as características de determinados personagens buscando tornar a novela atual e “aceitável” ao gosto contemporâneo.
No caso de Vale Tudo, tem um fato limitador e problemático que é a grande personagem da novela, a Odete Roitman, é uma vilã distópica, praticamente de outro planeta: alguém que tem nojo de pobre e não consegue conviver com pessoas de classes sociais diferentes. As falas e o jeito dela já eram violentos na época, mas hoje seriam vistos como aberrações.
Há um desafio de adaptar isso: atenuar as características da principal personagem da novela seria descaracterizá-la? Me parece que é diferente do que ocorre, por exemplo, em Renascer, que introduziu a figura de um pastor – uma atualização que faz sentido diante de uma nova configuração religiosa do país.
Mas como refazer uma vilã que falava barbaridades em 1988 e recriá-la em 2025? Não sei dizer se o remake é uma boa ideia. Pode ser que, em um processo de adaptação, algum autor tenha alguma luz e consiga recriá-la de forma fascinante, talvez traindo um pouco a novela original. Ou não: pode virar uma nova obra que frustre o público que viu a novela na época e não dialogue com o público atual.
ESCOTILHA PRECISA DE AJUDA
Que tal apoiar a Escotilha? Assine nosso financiamento coletivo. Você pode contribuir a partir de R$ 15,00 mensais. Se preferir, pode enviar uma contribuição avulsa por PIX. A chave é pix@escotilha.com.br. Toda contribuição, grande ou pequena, potencializa e ajuda a manter nosso jornalismo.