Tenho uma teoria de que Ivete Sangalo é uma das grandes artistas brasileiras que mais perdeu nos últimos anos. Não falo em perda financeira, mas de reputação. Sua imagem sofreu abalos recorrentes. Primeiro, foi a entrevista em que seu marido, Daniel, contava que a família toda pegou Covid por conta da empregada de casa, revelando completa falta de noção sobre seus privilégios de classe (como se eles não estivessem expondo a funcionária a riscos ao mantê-la trabalhando).
Mas penso que a figura outrora unânime de Ivete foi desestabilizada quando a cantora foi cobrada por um posicionamento político frente a um país tomado pela grave crise. Ao abster-se de tomar uma posição, Ivete desagradou tanto pessoas de esquerda quanto de direita. Deixou de ser a “mãezona”, a “Ivetona”, para ser acusada de ser uma celebridade enrustida que evita dizer o que pensa por medo de perder público.
Trago esta contextualização por me parecer que a Pipoca da Ivete, a nova atração dominical da Globo, joga justamente na confiança de que essa imagem possa ser resgatada. O nome do programa – que é nada mais que um programa de auditório clássico, sem nenhuma novidade – remete à memória da Ivete que comanda carnavais e trios elétricos, ou seja, de um nome associado à alegria e, por que não, à “união de todas as tribos”. Ou seja, o programa quer contabilizar na marca de Ivete antes que ela fosse desgastada, depois de muitas décadas de reinado.
O branding de Ivete é tão forte em sua espontaneidade acaba dando uma sensação de ser forçada.
E num país arrasado, parece até meio anacrônico apostar na celebração da alegria e da união. Mas a atração não empolgou exatamente pela suposta felicidade que traria ao público, mas pela revelação da pressão nos bastidores: este seria um programa crucial para a permanência do diretor Boninho na Globo, conforme revelou o colunista Guilherme Ravache, do UOL. Esta expectativa sobre o que será da nova atração parece ser mais interessante que o programa em si.
Um programa de auditório com nenhuma novidade
Basicamente, a matéria-prima de Pipoca da Ivete é o carisma da cantora, que se sedimenta como apresentadora depois de substituir Xuxa no Planeta Xuxa e de encarar o The Masked Singer Brasil. Ivete tem como seus trunfos o humor sempre para cima, a facilidade para fazer humor consigo mesma e para explorar a simpatia que se imagina ser típica dos baianos.
Não obstante, o branding tão forte em cima de sua espontaneidade acaba dando uma sensação de ser forçada. Como quando Ivete se chama de “mamãe”, querendo causar uma impressão de ser uma “matrona” nacional, numa posição que beira quase uma abordagem política. E, como toda mãe que força o amor, acaba caindo em uma espécie de chantagem.
A chantagem ao espectador aqui diz respeito a criar uma sensação de que todos os presentes, sejam anônimos ou celebridades, seriam como seus “filhos”. Acaba soando tão over que o programa perde muito de seu potencial de diversão.
O programa, em si, não traz nada de novo. Apenas mais uma série de competições sem muita graça, mas cujo objetivo é, talvez, causar o sentimento de proximidade do público com aquelas pessoas famosas. Em um quadro de karaokê da Ivete, anônimas cantaram uma música e a apresentadora incensou as duas participantes. Já num quadro realizado em um carro de papel, como se Ivete fosse uma taxista, uma conversa de intimidade foi forçada como se estivessem em uma espécie de sofá informal da Hebe.
Parece-me que as duas partes um pouco mais empolgantes foram um jogo entre famílias no início do programa, com a participação de Tadeu Schmidt (que parece ter um talento mais nato ao improviso e à apresentação do que Ivete, já que o humor se centralizou quase todo em suas interações). Por fim, Regina Cazé e Paola Oliveira interagiram com a apresentadora em imitações de uma cena clássica entre Tieta e sua irmã Perpétua, na novela Tieta, de 1989 – apelando, portanto, aos mais velhos que poderiam se empolgar com esta memória.
Encerrado o episódio da estreia, pode-se dizer que a parte mais atraente de Pipoca da Ivete segue sendo a tensão de bastidores e seus desdobramentos a longo prazo. Mas vale ainda ressaltar que parece um tanto inacreditável que a maior emissora do país pareça incapaz de investir em pesquisa ou em cérebros brilhantes para criar melhores formatos para os seus programas.
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