As plataformas de streaming estão investindo em peso em um formato meio “Frankestein”: uma espécie de produto audiovisual sobre celebridades, que se anuncia como documentário, mas tem pouca coisa da realidade esperada dentro desse gênero. A Globoplay, por exemplo, lançou séries documentais e documentários sobre Karol Conká, Juliette e Gil – todos subprodutos do BBB 21. A Netflix soltou série sobre Anitta, e filme sobre Michelle Obama, dentre outros. É, portanto, um filão cada vez mais explorado.
O apelo desses formatos documentais é o de trazer ao espectador um relance da “vida real”, com muitas aspas, daquele artista em questão – quase sempre, alguém que passou por algum dano em sua imagem pública (como Karol) ou que se tornou muito famoso (como Gil e Juliette) e a plataforma em questão pretende oferecer aos fãs a versão “real”, longe dos holofotes, daquele sujeito. Na prática, acaba significando uma confusão cada vez maior sobre o que é performance e o que é autêntico (aquilo que fazemos quando ninguém está olhando).
Recentemente, a Netflix lançou um produto bastante peculiar que bagunça ainda mais tudo isso. A série documental É o amor! – Família Camargo pretende exibir a “vida real” (com mais aspas ainda) da família de Zezé di Camargo, uma dinastia que constrói publicamente sua narrativa há pelo menos 30 anos. O passado de Zezé di Camargo e de seu irmão Luciano tornou-se nacionalmente famosa (e querida) por conta do filme 2 filhos de Francisco: a história de Zezé di Camargo & Luciano, de 2005.
No entanto, a família passou por muitos abalos – o principal deles talvez seja a separação dos dois irmãos, que é mencionada em tom de tensão na série É o amor!, embora nunca explicada (Luciano, aliás, nunca aparece). A produção da Netflix, na verdade, tem um propósito meio enigmático e não consegue explicar a que veio. É uma tentativa de humanizar Zezé e sua filha Wanessa, as duas pessoas que mais aparecem? Pretende explicar a separação conturbada de Zezé com a ex-mulher Zilu, mãe de seus filhos? É uma estratégia de mostrar que a família Camargo é gente como a gente?
Sou mais propensa a acreditar na última hipótese. Nesse sentido, É o amor! fracassa totalmente. A percepção que tive é que – salvo o fato de você ser um fã de carteirinha dessas pessoas – é bem provável que você fique com raiva dessa família no fim dos episódios. Se a ideia era mostrar os sofrimentos enfrentados por eles (a dureza da separação dos pais, o aborto de Wanessa Camargo, o drama em ter que lidar com a comparação com Sandy, a perda do pai Francisco, a dificuldade em lidar com o julgamento da mídia), novamente somos estimulados a encarar aquilo tudo como performance – e, por isso, essencialmente falso.
A percepção que tive é que – salvo o fato de você ser um fã de carteirinha dessas pessoas – é bem provável que você fique com raiva dessa família no fim dos episódios
Alguns exemplos. Em certo episódio, Wanessa é confrontada sobre o fato de que sofre crises de ansiedade e que não está olhando com seriedade para isso. Em seguida há uma cena em que ela tem uma crise ao lado do pai – e a câmera do documentarista, obviamente, ela está ali filmando. Noutro momento, Wanessa e o marido Marcus Buaiz conversam sobre o aborto que ela sofreu (uma suposta revelação da série), claramente roteirizados – a espontaneidade é zero.
Além disso, há um claro esforço em controlar a representação dos Camargo como pessoas simples, da roça, que não se corromperam pela quantidade de dinheiro que acumularam. Zezé é filmado visitando parentes pobres, e o tempo todo fala sobre o quanto os pais são importantes para ele, e o quanto a vida no campo representa o que ele realmente é. Sua namorada, Graciele, diz que vai fazer um jantar para ele de presente do dia dos namorados, mas quando vai até a cozinha, há uma funcionária para preparar.
Ou seja, tudo soa fake, orquestrado, tal como uma foto postada no Instagram. O ápice dessa estética ocorre quando Zezé organiza uma gravação na sua fazenda, e monta uma cabine de áudio improvisada juntando colchões – o que traz uma certa similaridade com os cafés de Bolsonaro com pão e leite condensado.
Por fim, a cereja do bolo (ou melhor, da antipatia) é aquilo que Zezé não pode disfarçar: as falas que ele tem sobre si mesmo, sobre a vida e sobre a sua ex-mulher. Ele diz, por exemplo, que Zilu (com quem supostamente tinha um casamento aberto – provavelmente apenas do lado dele), por ser sua mulher, “não fez mais do que a obrigação”. O tratamento concedido a Graciele na série também não sugere outro tipo de concepção à função de uma companheira para um homem. E talvez seja esse o maior relance de realidade que esse “documentário” carrega.
Mas penso que a chave para entender É o amor! está nos créditos: a série é produzida por Zezé Di Camargo, Wanessa e Marcus Buaiz. Ou seja, está mais para propaganda do que para série documental. Talvez agrade aos fãs.
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