A nostalgia é uma mola propulsora da cultura pop. E já faz um tempo que esse túnel do tempo tem se voltado à primeira parte dos anos 90, época de várias transformações impactantes. Entre elas, está o niilismo do grunge, que estendeu seus braços para a música, mas também para uma desilusão quanto à vida econômica e política, bem como para um culto às drogas (simbolizado, por exemplo, na estética heroin chic).
Mas, antes disso, houve um fenômeno interessante: o estabelecimento da era das supermodelos, mulheres que se tornaram mundialmente famosas por não mais serem um “cabide de roupas” (as chamadas manequins) da indústria da moda e passarem também a vender personalidade. E é esse contexto que é retomado pela série As Supermodelos, da Apple TV, que conta essa história a partir de suas quatro personagens mais centrais: Cindy Crawford, Christy Turlington, Naomi Campbell e Linda Evangelista.
São elas que representaram o sonho feminino durante o início dos anos 90 (até serem destronadas pela “humanidade” grunge a partir de modelos mais reais, como Kate Moss) e que sedimentaram essa imagem a partir do icônico videoclipe Freedom ‘90, de George Michael, dirigido pelo então desconhecido David Fincher (no vídeo, também figurava Tatjana Patitz, que morreu recentemente de câncer de mama).
Os quatro episódios de As Supermodelos, portanto, prometem um resgate desse tempo a partir da ótica pessoal destas quatro celebridades, que falam sobre como foi o poder representado por ser uma super personagem da moda numa época em que isso significava muito mais que hoje.
O sonho de princesa dos anos 1990
Se hoje o sonho de muitas meninas é ser influencer, nos anos 1990 e 2000, não havia nada mais grandioso do que um dia ser descoberta por um olheiro na rua e se tornar uma super profissional da moda. Era a promessa de um mundo de dinheiro, poder e admiração externa – quase como uma versão atualizada do mito da Cinderela.
A julgar pela série da Apple TV, milhares de meninas tentaram, mas só essas quatro realmente chegaram no topo do mundo (há um certo estranhamento pela exclusão de nomes como da alemã Claudia Schiffer e da dinamarquesa Helena Christensen – a brasileira Gisele Bündchen é de uma geração posterior).
E todas elas têm uma origem meio mágica: Christy limpava um celeiro quando foi descoberta; Cindy estava indo para faculdade estudar engenharia; Naomi sonhava em virar dançarina e atriz. Apenas a canadense Linda Evangelista cobiçava desde pequena esta profissão.
Uma crítica legítima é apontar que há um tom “chapa branca” em uma narrativa produzida pelas próprias perfiladas, em uma espécie de autobiografia.
Na série – que tem as próprias modelos como produtoras executivas – embarcamos em um passeio nostálgico para dentro dessa história de glamour, sonho e (por que não) desilusão inerente a todo mundo que chega ao ápice. Os episódios são enfileirados em uma lógica simples, que vão desde a ascensão das modelos, os anos vividos no auge e, por fim, o que elas estão fazendo hoje.
Uma crítica legítima é apontar que, por óbvio, há um tom “chapa branca” em uma narrativa produzida pelas próprias perfiladas, em uma espécie de autobiografia. Ainda assim, não se pode negar que as modelos deixem de apontar os momentos mais negativos de suas trajetórias.
Naomi Campbell, por exemplo, comenta sobre seu problema com drogas (o qual ela alega ter sido causado pelo abandono e pela ausência da figura do pai). Já Linda Evangelista menciona com remorso uma das suas falas mais famosas, a declaração de quem nem levantava da cama se não fosse para receber pelo menos 10 mil dólares.
Outro aspecto louvável é que todas elas não se furtam de falar sobre momentos de arrogância em suas carreiras, inclusive exibindo gravações de cenas em que eram flagradas performando como divas antipáticas (favorece a série documental o fato de que praticamente tudo em torno dessas estrelas era gravado). Até mesmo designers famosos, como John Galliano e Marc Jacobs, dão testemunhos reveladores nesse sentido.
Para encerrar, há o foco – bastante importante historicamente – de como elas foram “destronadas” pelo fim iminente da época do glamour, que passou a ser sobrepujada pela depressão da era grunge, em que as mulheres perfeitas logo deram espaço a pessoas mais reais e de fácil identificação com o público. Como fica evidente em As Supermodelos, o quarteto até tentou se encaixar, mas acabou encontrando novos caminhos de negócios (incluindo, como as quatro fazem questão de evidenciar, uma ênfase em trabalhos de caridade).
O fechamento de sua era, aliás, ganha contornos mais históricos a partir de episódios que marcaram o clima de fim da festa, como o assassinato de Gianni Versace na frente de sua casa em Miami, no ano de 1997. A parte mais melancólica da série fica diz respeito aos depoimentos de Linda Evangelista, provavelmente o rosto mais belo e marcante do grupo, mas que enfrentou maus bocados nos trinta anos que se passaram, incluindo um casamento abusivo e a recorrência a tratamentos estéticos que deram errado.
Ao revelar os altos e os (poucos) baixos dessas mulheres, As Supermodelos se torna mais interessante do que poderia parecer à primeira vista. Para quem cresceu nos anos 1990 e testemunhou tudo isso de perto, As Supermodelos é uma diversão e tanto.
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