A nostalgia é uma mola propulsora bastante forte no entretenimento. Adoramos por um tempo as narrativas que exploravam a estética dos anos 80. Mas o tempo passou e chegamos a uma realidade um tanto dura para nós, millenials: os anos 1990 também já viraram vintage. Diria que o thriller Yellowjackets, série da Paramount+, acerta justamente ao beber dessa fonte e se comunicar diretamente com esse público, sem fechar as portas para os demais espectadores.
Ele não apenas apela à saudade de quem cresceu nessa década e viveu a onda grunge, mas também acena a quem estava lá quando Lost (a série-catástrofe levada ao ar entre 2004 e 2010) pareceu trazer uma revolução da a TV, nos apresentando um novo tipo de experiência com as narrativas seriadas, que se estendia para uma participação online.
Caso você se encaixe de alguma forma nesse público, fica difícil resistir à história das Yellowjackets. Atualmente na sua segunda temporada, a série é uma mistura de tragédia, horror e drama que resgata não apenas a trilha sonora (que se centraliza sobretudo nas artistas e bandas com vocais femininos dos anos 90, como Liz Phair, Fiona Apple, Hole, Garbage e muitas outras), mas também as estrelas que conquistavam os corações (dos meninos e das meninas) dessa época.
Falo aqui de atrizes como Christina Ricci (a “Wandinha” original, além de musa de filmes indie como Buffallo 66), Juliete Lewis (a eterna Mallory Knox de Assassinos por Natureza) e Melanie Lynskey (que se instalou na cultura popular na figura de Rose, a vizinha obsessiva de Charlie e Alan Parker em Two and a Half Men). Elas se somam a um elenco de jovens talentos que fazem as suas versões mais jovens em uma história que é entrecortada o tempo todo pelo passado e pelo presente (tal como Lost, aliás).
‘Yellowjackets’: uma tragédia feminina
https://www.youtube.com/watch?v=yJD2wpq2za8
Criada por Ashley Lyle e Bart Nickerson (autores também de Narcos), Yellowjackets parte de uma premissa batida para criar uma história bem original. Ela começa em 1996, quando o time estudantil de futebol Yellowjackets chega ao campeonato nacional. Elas embarcam num voo particular para participar do torneio, mas o avião cai em um lugar ermo. Alguns dos tripulantes morrem na hora e outros sobrevivem.
Só que essa história é contada intercalando o presente (com as sobreviventes já adultas) com flashbacks desse grupo (na maior parte, formado por meninas adolescentes, além de alguns meninos e o treinador do time) tentando sobreviver em uma floresta cheia de elementos assustadores. Sabemos, por conta desse passeio temporal, que elas ficaram neste local durante 19 meses até serem resgatadas, tornando-se uma curiosidade nacional. Mas o que não sabe exatamente é quais segredos elas guardam sobre o que ocorreu lá.
Um dos aspectos mais interessantes da estratégia de misturar presente e passado é entender como cada uma das meninas lida até hoje com as consequências do que ocorreu com elas.
Se a referência televisiva mais forte aqui é Lost, a literária é mais clássica. Há muitos que se lembram de O Senhor das Moscas, romance de 1954 de William Golding. Em comum, ambos investigam uma questão semelhante: o que acontece quando um bando de adolescentes fica preso em um lugar remoto que os coloca à prova diária em busca da própria sobrevivência. Nos dois casos, o que se vê é a emergência do que há de mais primitivo naquelas pessoas, em detrimento com comportamentos tidos como mais civilizados.
Yellowjackets traz ainda uma investigação sobre os efeitos do trauma. Não sabemos exatamente o que ocorreu na floresta (fora a pista do canibalismo, que já fica sugerido na primeira cena da série), mas um dos aspectos mais interessantes da estratégia de misturar presente e passado é entender como cada uma das meninas lida até hoje com as consequências do que ocorreu com elas.
A novidade, portanto, se dá na natureza do mistério: ele gira menos em torno do que ocorreu lá (quem morreu, por exemplo) e sim em como essas pessoas sobreviveram. Mas, mais do que isso, há uma alta quantidade de drama bem desenvolvido que cativa o espectador em uma narrativa que é, acima de tudo, feminina – os personagens homens são quase como acessórios para que elas possam brilhar.
Por que é tão legal?

Tudo o que mencionei até aqui talvez não daria muito certo se não houvesse um aspecto: a capacidade de Lyle e Nickerson em elaborar personagens complexas, plenamente desenvolvidas e cheias de camadas, a quem conseguimos nos apegar – seja para amar ou odiar.
Há muitos indivíduos interessantes que cruzam a trama de Yellowjackets. Por isso, atenho-me apenas às principais. A primeira é Shauna (papel de Melanie Lynskey adulta e Sophie Nélisse adolescente), uma dona de casa entediada no casamento e na vida em geral, que parece ter tanta repulsa à filha do que a filha tem pela mãe. Na tragédia, Shauna se descobre grávida – e o pai é o namorado de sua melhor amiga, Jackie (Ella Purnell).
Outra sobrevivente é Taissa (Tawny Cypress na versão adulta e Jasmin Savoy Brown como adolescente), uma advogada negra empoderada que galga postos mais altos na política. Casada com outra mulher e mãe de um menino, Taissa tem forte participação nos rumos tomados na floresta, onde enfrenta os primeiros momentos de algum distúrbio mental, que se manifesta por um sonambulismo severo e que trará consequências para o resto de sua vida.
Há ainda Natalie (Juliette Lewis e Sophie Thatcher), a ovelha negra do grupo, uma menina de família pobre, fortemente abusiva, e que revela comportamentos sombrios desde cedo. Mesmo adulta, continua levando uma vida errante e tendo um sério problema com drogas.
Por fim, há a esquisitona Misty (Christina Ricci e Sammi Hanratty), que simplesmente não consegue se encaixar no grupo por ser simplesmente demais: excessivamente carente, grudenta, obsessiva por coisas que ninguém se importa. Ao crescer, Misty trabalha como enfermeira de idosos (uma carreira perfeita para quem sempre tentou agradar os outros), mas se dedica a um hobby como detetive amador, momento em que troca figurinhas com outros nerds na internet.
Há muito mais que isso, mas apenas as histórias centrais já são suficientes para nos deixar conectadas e conectados a essa trama fundada em horror, traumas, espiritualidade, suspense, mas sobretudo nos laços femininos que se desenrolam e se sustentam mesmo nos piores momentos que existem. Sem dúvida, uma série para compartilhar com as amigas.
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