Na segunda-feira, dia 14, um programa Roda Viva celebrativo dos 70 anos da inauguração TV brasileira trouxe à mesa José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, que talvez seja o mais famoso executivo do veículo. Já aposentado, Boni começou a trabalhar com televisão na década de 1950, e é considerado por muitos como um verdadeiro gênio a pensar o suporte e a planejar e realizar os maiores avanços da TV no Brasil – sobretudo, dentro da Rede Globo.
Na berlinda do Roda Viva, Boni estava cercado de entrevistadores também de peso: gente como Maria Adelaide Amaral, autora de novelas, Zeca Camargo, jornalista e apresentador, e Roberto Muylart, ex-presidente da TV Cultura. Em certa altura, Boni enfrentou uma questão acerca das frequentes denúncias de assédio envolvendo estrelas televisivas, como Marcius Melhem e José Mayer. Sua resposta foi: “Temos que lembrar que há muito folclore. No meu tempo, eu não acredito que houvesse outro critério que não fosse talento ou capacidade. Se, eventualmente, fizessem alguma coisa, a gente mandava embora (…) Na minha sala nunca chegou um caso de reclamação de assédio”. Em outro momento, encampado por Maria Adelaide Amaral (que dizia que o mundo está careta e chato), criticou o politicamente correto, o qual definiu como forma de censura.
Trago estes momentos do Roda Viva pois considero-os bastante sintomáticos para iniciar uma reflexão sobre 70 anos de televisão. Uma septuagenária, naturalmente, passou por muitas fases – e ali, neste programa, recebia-se participantes dos primeiros ciclos televisivos. As falas de Boni e Maria Adelaide Amaral, ao que me parecem, refletem perfeitamente as tensões destes 70 anos de TV: o fato de que ela surge quase como uma empresa artesanal, regida pelas paixões e pelos “jeitinhos”, pelo amadorismo e pelo profissionalismo que convivem juntos. Pela velha guarda que saúda um passado, e a nova que prefere olhar para a frente – e, portanto, ser “politicamente correta”. Em suma, a TV é arte, ao mesmo tempo em que é uma máquina de produção. Só não conseguimos definir exatamente o que ela produz.
Talvez não haja veículo mais perfeitamente adequado para ser chamado de “indústria cultural”, o famigerado epíteto cunhado pelos pensadores da Escola de Frankfurt, hoje tão debatidos (embora pouquíssimo compreendidos). O termo é ótimo justamente porque aproxima coisas que não aparentemente não conversam: a indústria, com seus processos padronizados, com a criação de produtos idênticos e sem identidade; e a cultura, que diz respeito a tudo que nasce do homem e reflete suas angústias e anseios. Pois bem, a televisão, por natureza, é contraditória – é indústria e é cultura. Fala sobre a gente na mesma medida em que tenta nos vender uma série de produtos homogêneos.
Passados 70 anos, com uma convivência ativa com vários outros meios de comunicação (em especial, a internet e suas sedutoras redes sociais), para onde vamos? Obviamente, não sabemos – e nem o Boni sabe.
No Brasil, a TV surge na base do improviso e do jeitinho – em um processo bem documentado na obra Chatô, o Rei do Brasil, livro escrito por Fernando Morais que registra a vida de Assis Chateaubriand, o responsável por trazer a TV ao país em 1950, em uma transmissão ocorrida dentro do prédio de sua empresa, a Diários Associados. Chatô foi uma espécie de gênio de caráter duvidoso, como todo grande empresário parece ser. Mas é claro que um empresário do ramo da comunicação nao é qualquer tipo de inescrupuloso: é alguém que comanda uma empresa que vende produtos não mensuráveis e, por isso mesmo, extremamente perigosos.
E o que a TV brasileira vendeu, em 70 anos? Ela comercializou produtos das mais diferentes espécies. Vendeu alguns sonhos enquanto cerceava outros, quando seduziu os espectadores com as narrativas das novelas que nos faziam desejar passeios no Leblon; ao mesmo tempo em que fez com que a população negra simplesmente não existisse em suas telas (sobre esse tema, recomendo fortemente o documentário A negação do Brasil). A TV foi uma janela para conhecermos a realidade, ao mesmo tempo em que distorceu absolutamente os fatos que noticiava (sobre isso, recomendo o documentário da BBC Muito além do Cidadão Kane).
Ela nos forneceu “babás eletrônicas” que nos “cuidavam” e sobre quem reconhecíamos quase como se fossem parte de nossa família, como Xuxa, Angélica e Mara Maravilha; por outro lado, ela favoreceu o consumismo precoce em crianças com sua (hoje chocante) publicidade infantil agressiva. Ela nos entreteve e nos confortou nos momentos difíceis, mas ao mesmo tempo nos entorpeceu com uma guerra pela audiência, nos anos 90, que só servia para provar que nada era tão ruim que não poderia piorar. Ela nos tornou mais espertos, mas, por meio de programas policialescos, também instaurou entre nós um sentimento aflitivo de insegurança do qual nunca conseguimos nos livrar.
Passados 70 anos, com uma convivência ativa com vários outros meios de comunicação (em especial, a internet e suas sedutoras redes sociais), para onde vamos? Obviamente, não sabemos – e nem o Boni. O que sabemos, por outro lado, é que esses 70 anos nos mostram que, quando menos se espera, a TV sempre se reinventa e continua presente entre nós, por ser o único veículo capaz de nos oferecer uma série de sentimentos: o de identidade, de fazer parte, de sentir-nos próximos uns dos outros pelo simples fato de consumirmos as mesmas mídias. E nesta toada, ela segue firme e forte com fôlego para mais 70 anos.