A história de José Henrique Bortoluci é comum a muitos brasileiros. Filho de um caminhoneiro que percorria o Brasil, ele pode estudar muito mais que seus pais, o que cria, quase naturalmente, um abismo entre as gerações – que muitas vezes resulta em afastamento. Em sua obra, o sociólogo e escritor usa esse mote para investigar, a partir de sua sensibilidade e dos aparatos teóricos proporcionados por sua profissão, a vida de seu pai e, por consequência, a história do Brasil. É isso que ele entrega aos seus leitores em O Que É Meu, um livro que se tornou um fenômeno editorial ainda antes de seu lançamento: foi traduzido em mais de dez línguas e publicado em editoras importantes pelo mundo.
Nessa entrevista exclusiva à Escotilha, Bortoluci fala sobre o processo de escrita de uma obra que intercala o relato pessoal com uma leitura sociológica da realidade, e discute as suas referências teóricas e literárias para essa empreitada.
Escotilha » O Que É Seu foi negociado com editoras de vários países antes mesmo de ser publicado aqui. O fato chama a atenção justamente porque ele narra uma vida tipicamente brasileira, refletindo diferentes momentos históricos do país. Além das óbvias qualidades literárias do livro, como você explicaria esse interesse estrangeiro pela obra (a obra está para ser publicada em 11 línguas)?
José Henrique Bortoluci » Foi uma grande surpresa essa aceitação e interesse pela obra em vários países, ainda antes de ele ser publicado. Conversando com editores e colegas do exterior, penso que há alguns fatores que talvez possam explicar. A primeira coisa é um interesse por questões de meio ambiente no Brasil, em especial sobre a Amazônia, que é um tema que o livro toca. Meu pai passou boa parte da vida viajando pela Amazônia, participou de grande obras, e o livro fala sobre essas questões da devastação da natureza e da floresta.
“O livro é um aprendizado do meu lado sobre a vida do meu pai, mas há também essa outra dimensão – de ir trocando com o meu pai e explicando um pouco o que faz um intelectual, um acadêmico”.
José Henrique Bortoluci
Um segundo aspecto é que o livro dialoga com publicações recentes que tiveram muita atenção na literatura internacional, que entram na chamada autoficção, o que inclui autores e autoras franceses como Annie Ernaux, Édouard Louis, o norueguês Karl Ove Knausgård, que tem um grande sucesso internacional, e vários autores que estão dentro dessa chave.
Eu nunca dei ao meu livro o nome de autoficção, pois ele também mantém o diálogo com outras tradições da ficção literária contemporânea, ou mesmo no jornalismo literário da Svetlana Alexijevich, que menciono como uma referência para mim no livro. Há também uma corrente anglo-saxã que tem ganhado o nome de autoteoria, em que um nome muito importante para mim é da escritora Maggie Nelson. Então me parece que o livro é muito brasileiro no conteúdo, ao mesmo tempo que é internacional nessas referências.
E, por fim, acho que há um terceiro fator. O manuscrito do livro começou a circular entre editores internacionais em outubro de 2022, em um momento que o Brasil começava a sair de um período de isolamento por escolhas políticas de um governo de extrema direita. Ou seja, foi logo depois das eleições em que um outro caminho político foi escolhido pela população, que mira a defesa da democracia e o diálogo internacional com forças que valorizam a cultura, a literatura, e por aí vai.
Uma das coisas que mais me chama a atenção em O Que É Seu é o estilo que mistura elementos da literatura com da pesquisa acadêmica. Em alguma medida, escrevê-lo soou, talvez inconscientemente, como uma explicação para o seu pai sobre o que você estudou a vida toda?
Penso que sim. De certa forma, o livro é um aprendizado do meu lado sobre a vida do meu pai, mas há também essa outra dimensão – que é, mesmo que por vias não tão diretas, ir trocando com o meu pai e explicando um pouco o que faz um intelectual, um acadêmico. Isso ocorreu tanto no processo de entrevistas com ele, por meio de discussões, e também depois que o livro foi publicado.
Eu li o livro para o meu pai. Ele não teria lido por conta própria, pois os livros eram coisas muito distantes para ele, mas eu achava que tinha que contar essas histórias de volta para ele, para que a obra ganhasse mais concretude. Foi um processo que envolveu muita troca e muita escuta dos dois lados sobre vidas muito diferentes.
A sua obra foi publicada com ele ainda em vida, o que deve ter trazido uma importante reflexão dele ao ver sua própria história contada pelo filho. Como ele reagiu a ter a própria vida documentada?
Ele me perguntava muito por que eu estava fazendo aquelas entrevistas, por que eu queria ouvir as histórias dele. Às vezes eu retornava essa pergunta, indagando o que ele achava. Ele dava respostas diferentes. Muitas vezes dizia que eu queria uma lembrança dele, ou para conhecer melhor a vida dele.
Acho que, para nós dois, foi transformador. Para mim, eu posso dizer com certeza que sim, e pelo que ouvia dele, me pareceu que foi um processo muito importante para ele. Para toda a família, na verdade. Acho curioso que muitos leitores me escrevem dizendo que essa troca entre eu e meu pai, quando foi transformada em literatura, foi importante para que elas e eles pudessem refletir sobre as distâncias e as dificuldades, mas também sobre os prazeres na comunicação com os pais.
Um tipo de retorno que recebo e me deixa muito emocionado é quando um leitor diz que começou a pensar a escrever um livro ou no mínimo de recuperar as memórias de pessoas próximas, depois de ter lido O Que É Seu.
Me parece que sua obra mantém uma certa semelhança com às de outros autores, que também falam de suas famílias e trazem esse diálogo com aportes teóricos. Talvez a referência mais óbvia seja Annie Ernaux, mas enquanto lia, lembrei também de Saia da Frente do Meu Sol, de Felipe Charbel. Há algum livro que te inspirou enquanto você escrevia?
Muitos livros me inspiraram enquanto escrevia, o que eu fui deixando mais ou menos explícito no próprio texto. Isso foi intencional. Começo o livro com uma epígrafe de Roland Barthes, que diz que não há texto sem filiação. No meu caso, esta filiação é obviamente familiar, mas também é literária, dos livros que ecoaram na minha cabeça enquanto eu produzia esta obra.
Annie Ernaux e Didier Eribon foram muito importantes para mim, dentro dessa tradição francesa de autoficção. Mas há outros livros também, como os de Maggie Nelson, que carregam a ideia de que você pode fazer teoria a partir dos relatos de certas dimensões de uma vida pessoal.
As entrevistas que fiz também se inspiram em técnicas do jornalismo literário, com a busca de relatos de pessoas comuns, como faz a Svetlana Alexijevich. Ela foi fundamental para mim por essa ideia de criar uma voz autoral do meu pai, e não apenas relatá-lo na minha primeira pessoa.
Cito ainda duas referências literárias por motivos temáticos: A Terceira Margem do Rio, de Guimarães Rosa, e a Odisseia de Homero. Ambos os textos falam de filhos que buscam os seus pais, e isso foi aparecendo para mim durante o livro.
Por fim, também menciono a influência do cinema documental brasileiro, em especial com Eduardo Coutinho, com sua tradição por um cinema de escuta que eu acho muito importante na nossa cultura.
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