A Boa Esposa (2020) começa com a intenção de não deixar dúvida sobre o que pretende tratar. Um texto explicativo desliza na tela e toma os segundo iniciais da produção. Ele informa que “não muito tempo atrás, o destino das jovens era serem esposas e mães perfeitas”. Para isso, “havia mais de mil escolas de donas de casa na França”, sendo que a história prestes a ser contada acontece em uma delas: “a escola para moças Van Der Beck, às vésperas dos eventos de maio de 1968 que mudaram tudo”.
Paulette (interpretada pela ótima Juliette Binoche) e o marido Robert (François Berléand) mantêm a instituição de ensino citada no texto inicial. O casal é ajudado por duas professoras: Gilberte (Yolande Moreau), irmã de Robert, e a freira Marie-Thérèse (Noémie Lvovsky). A construção desses quatro personagens responsáveis pela direção do internato investe em atitudes exageradas, mecânicas, cartesianas que desembocam no humor. São características contrastantes com o comportamento natural das estudantes que ingressam no local.
A caricatura de Paulette, Robert, Gilberte e Marie-Thérèse aponta para o sarcasmo de uma atividade que passa a ser vista como ultrapassada. Afinal, as próprias adolescentes começam a questionar regras como, por exemplo, serem responsáveis não só pela higiene corporal própria, mas, também, do futuro marido a ser conquistado graças aos muitos conhecimentos adquiridos no decorrer de dois anos de internato. Logo ao chegarem na escola, as alunas são apresentadas aos “sete pilares” que garantirão a perfeição delas como mães e esposas. São muitas as regras para serem boas cozinheiras, bordadeiras, costureiras, belas, recatadas e do lar.
Uma das grandes marcas deste filme dirigido por Martin Provost é pontilhar a trama com inúmeros sinais de rompimento daquele universo de transformação das futuras mulheres em “escravas” de seus maridos, para usar um termo que as próprias personagens adolescentes usam. É atraente e prazeroso perceber como, aos poucos, o rigor e a ordem são questionados. É como se pequenas rachaduras surgissem a todo o momento, prestes a pôr abaixo uma forma de encarar a vida, prestes a pôr abaixo os “pilares” que orientam toda a educação ministrada na instituição.
É atraente e prazeroso perceber como, aos poucos, o rigor e a ordem são questionados. É como se pequenas rachaduras surgissem a todo o momento, prestes a pôr abaixo uma forma de encarar a vida
Por falar em rachaduras e sutilezas, uma trinca literal é mostrada na parede ao lado da janela de Paulette em uma cena inusitada envolvendo o personagem André Grunvald, interpretado por Edouard Baer. É o símbolo do rompimento com uma vida antiga, já que André é o novo amor de Paulette depois que Robert morre. A morte de Robert é outro sinal de mudança de mundo. Afinal, ele é mais velho que Paullette e único representante do universo masculino em um ambiente cheio de mulheres.
Meninas unidas em coro lutando para fazer xixi em horário não permitido pela disciplina de Marie-Thérèse. A alegria de Paullette ao saber que terá um talão de cheques em seu nome. Sua dificuldade em dirigir porque o falecido não a deixava pegar o carro. Um chá propositalmente derramado fora da xícara durante a aula de etiqueta. A mulher que resolve vencer o desconforto do olhar e julgamento alheios ao vestir uma calça. São vários os sinais de mudança. São indícios que têm como pano de fundo (também bem sutil) o contexto histórico daquele maio de 1968, símbolo de ideais revolucionários em todo o mundo, marcado por manifestações de estudantes e de trabalhadores e efervescência de ideias.
Por meio da comédia caricata e da inserção bem distribuída de inúmeros vestígios do rompimento de um mundo, A Boa Esposa fala de história e empoderamento feminino sem abrir mão do enlace bem costurado de delicadeza e discurso político, de crítica e beleza. Afinal, a direção de arte e a direção de fotografia destacam-se tanto em sua reconstrução do ambiente do interior da França na década de 1960 quanto em sua exposição das lindas paisagens que marcam a região.