Na sequência inicial de Casa Izabel, impactante longa-metragem do cineasta paranaense Gil Baroni que abriu na noite de quarta-feira, em uma Ópera de Arame lotada, o festival Olhar de Cinema, vê-se um homem (Andrei Moscheto) chegar de ônibus a uma propriedade rural imponente, em estilo colonial brasileiro. O ano é 1970 e o país está em plena ditadura.
O visitante, sujeito corpulento, bastante tímido, hesitante, é recebido por Dália, uma empregada, com ares de governanta, que lhe apresenta de modo levemente autoritário, ainda que sem perder a polidez, as regras do estabelecimento, uma espécie de hotel-fazenda – o lugar se chama Casa Grande Izabel, o que nos revela um tanto sobre o passado do lugar.
Armas devem ser deixadas na recepção, em hipótese alguma os hóspedes deverão abordar assuntos de caráter pessoal, íntimo, com os demais visitantes e está terminantemente proibida a “fornicação”. Em seguida, o recém-chegado é conduzido por outra funcionária, Leila (Jorge Neto), na verdade um rapaz jovem, vestido de mulher, ao andar superior, onde ele também poderá escolher trajes femininos que vestirá enquanto lá estiver. Também lhe é solicitado que escolha um nome feminino, de sua preferência. Opta por Regina, e é informado que significa rainha em latim.
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Aos poucos, por meio de uma narrativa tensa, imersa em uma saborosa mistura de mistério e humor, vamos descobrindo o que é a Casa Izabel. Trata-se de um inusitado refúgio para homens maduros, casados, que gostam de viver a fantasia de trajar roupas femininas exuberantes, de se sentirem como mulheres ricas que se conhecem há muito tempo, e partilham de cumplicidade, porque guardam um traço comum: fora dali, no mundo masculino, são todos militares de carreira.
O elenco de Casa Izabel, grande vencedor da última edição do Cine PE, realizado em Recife, é, sem exagero, espetacular.
Espécie de alegoria buñuelesca sobre a hipocrisia e o poder no Brasil. Casa Izabel é mais um acerto de Gil Baroni, diretor de Alice Júnior, premiada comédia dramática teen protagonizada por uma adolescente trans, também roteirizada pelo talentoso Luiz Bertazzo. Ambos são filmes queer, que discutem cada um à sua maneira identidades de gênero, mas Casa Izabel é uma obra mais madura, grave e perturbadora, porque fala do que não se vê, do que está oculto, em uma sociedade que se orgulha de seu conservadorismo, de suas convenções sociais rígidas.
Bertazzo se baseou livremente em Casa Susanna, livro de fotografias que mostra os frequentadores do lugar que lhe dá título: homens estadunidenses travestidos de mulher que se reuniam secretamente, entre os anos 1950 e 60, aos fins de semana nessa propriedade isolada, em Catskills, no estado de Nova York
Ditadura
Mas Casa Izabel conta uma história bem brasileira. Dália (Laura Haddad, excelente) não é apenas uma serviçal. Ela vive na pele a dor de não saber o que aconteceu com o filho, um estudante universitário, militante de esquerda, que desapareceu sem deixar rastros. É empregada há anos da casa, que leva o nome de sua dona, vivida por um esplêndido Luís Melo. Ela/ele, doente, às portas da morte, vive trancado em um quarto fétido, onde assiste a filmes caseiros que retratam os dias dias de glória do estabelecimento.
Com medo de ser abandonada, Izabel promete deixar, quando morrer, a fazenda à empregada e seus filhos – o outro, na verdade um sobrinho, é Leila, que recebe e serve, também vestido de mulher, os hóspedes.
O elenco de Casa Izabel, grande vencedor da última edição do Cine PE, realizado em Recife, é, sem exagero, espetacular. Além de Melo, estão em cena grandes atores paranaenses, como o saudoso Luiz Carlos Pazello (que partiu em abril passado), Zeca Cenovicz, Andrei Moschetto, Sidy Correia, Otávio Linhares, Fábio Silvestre e a revelação Jorge Neto, que arrasa como Leila.
Aplaudidíssimo na gelada mas fervilhante sessão de abertura do Olhar de Cinema, Casa Izabel é um filme que nos atropela, porque nos diz respeito. Rodado em 2019, no primeiro ano do governo Bolsonaro, é uma obra que se remete ao passado, mas fala de um Brasil mais presente do que imaginamos, do que gostaríamos, onde estruturas de poder oligárquicas, patriarcais e falso moralistas se perpetuam através do tempo. Não poderia ter sido uma escolha melhor para inaugurar o maior evento cinematográfico do Paraná.
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