As muitas camadas de leitura presentes em qualquer filme de zumbi costumam ser chamativas. Por mais trash que seja uma produção sobre o tema, há sempre uma entrelinha, uma interpretação possível sobre seres humanos desprovidos de cérebro (ou com capacidade reduzida para interpretar o mundo que os cerca); “mortos vivos” (pessoas que apenas passam pela vida sem muita emoção ou ação); sociedade altamente consumista, que compra como se estivesse no automático e só tivesse uma única preocupação: alimentar-se de coisas, de bens materiais. Enfim, são múltiplas as possibilidades de interpretação.
A produção irlandesa Os Curados (2017) investe na temática zumbi para falar, como subtexto (ou nem tanto), sobre segregação e as consequências tensas disso. A trama tem início com o anúncio de cura para uma doença que transformou pessoas em zumbis (ou, conforme explica o texto inicial do filme, espalhou “psicose violenta”). O vírus atingiu toda a Europa, mas teve impacto maior na Irlanda.
Depois da divulgação da cura, o governo trabalha em um programa de reintegração social dos reabilitados, capitaneado pelo exército. Uma parcela significativa da sociedade, no entanto, é altamente contrária a essa reinserção. Essas pessoas temem que os curados possam voltar, a qualquer momento, a transformar-se em terríveis seres famintos de carne humana.
É nesse contexto que o roteiro apresenta Senan (Sam Keeley) e Conor (Tom Vaughan-Lawlor), que se tornaram grandes amigos durante o processo de reabilitação. Quando recebem alta, os dois separam-se e, na despedida, Conor dá a Senan um conselho misterioso: “não conte a ela”. Em seguida, o espectador acompanha Sean voltando para sua casa para morar com sua família que, com o tempo, percebe-se ser formada pela cunhada Abbie (Ellen Page) e pelo sobrinho.
A sensação de que o instinto sanguinário dos curados pode retornar a qualquer momento é algo que alimenta o suspense e funciona como metáfora da instabilidade emocional humana.
As informações pessoais de Senan (seus vínculos familiares e seu passado) vêm aos poucos, em “conta-gotas”. É com o tempo que o espectador saberá a que se refere, afinal, aquele enigmático conselho do início do filme. O que não fica nada difícil de perceber, no entanto, é o crescimento da discriminação das massas contra aqueles que venceram o vírus. Ao invés de alívio, o aparente fim da pandemia tende a criar novo caos social. Conforme consta no cartaz de divulgação do filme, “a cura é só o começo”. A discriminação ganha força pelo fato de a cura não funcionar para cerca de 25% dos infectados que, por esse motivo, são chamados de “resistentes”.
Com base nessa trama, o diretor e roteirista irlandês David Freyne cria um “festival de segregação” para então criticá-lo. De um lado, existe a rejeição social à reinserção dos curados; de outro, os curados começando a alimentar ódio contra a sociedade. De outro lado, ainda, há quem defenda o extermínio dos resistentes. E, por fim, desentendimentos internos entre os curados. Em sentido mais amplo, o filme é uma metáfora da humanidade segregada. Em termos mais restritos, pode ser um “espelho ficcional” da própria Irlanda, historicamente marcada por conflitos religiosos entre católicos e protestantes.
A sensação de que o instinto sanguinário dos curados pode retornar a qualquer momento é algo que alimenta o suspense e funciona como metáfora da instabilidade emocional humana. É difícil prever quando uma pessoa pode, eventualmente, mudar completamente de humor e passar da suavidade à profunda irritação em questão de horas. Ou poucos minutos. Difícil prever, também, as consequências dessa mudança de humor.
Ao servir de alerta para as divisões e ódios que surgem entre os diversos grupos sociais, Os Curados vai muito além de lançar nos ouvidos do espectador palavras como “epidemia” e “quarentena” ou, simplesmente, apresentar-se como uma proposta de entretenimento baseada na temática zumbi.
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