“A paixonar-se é uma forma socialmente aceita de insanidade”, diz uma das personagens do filme Ela (2013). Nessa linha de raciocínio, enamorar-se por um sistema operacional que parece ter vida própria não seria necessariamente uma aberração. Ou seria? Essa questão é apenas uma das tantas provocadas pela obra escrita e dirigida por Spike Jonze.
Na trama, o espectador acompanha Theodore (Joaquin Phoenix), que escreve cartas supostamente à mão. Na verdade, o que ele faz é ditar para o computador frases que tentarão estreitar os laços entre as pessoas. A máquina redige em letra cursiva e imprime, como se a correspondência tivesse mesmo sido elaborada de próprio punho. Para alguém sensível, recém-separado e tão familiarizado com a interferência da tecnologia naquilo que é tão humano (a possibilidade de expressar afeto), investir em um relacionamento com uma voz de inteligência artificial acaba sendo encarado como um desfecho até natural. Pelo menos é esse o contexto que o roteiro de Jonze constrói para, então, falar sobre a complexidade dos relacionamentos.
Em ‘Ela’, a inteligência artificial está concentrada no campo das emoções, de forma discreta e silenciosa. Nem por isso, o enfoque do assunto deixa de ser assustador. E inquietante..
Theodore realmente apaixona-se por “alguém” que “nasceu” e “vive” apenas em um sistema operacional. Na história, essa “pessoa” ganha o nome de Samantha. Scarlett Johansson é quem empresta a voz para esse personagem peculiar. Em determinado momento, o protagonista tece considerações filosóficas sobre o fato de possivelmente já ter sentido tudo o que poderia e que, sendo assim, o que mais viesse a partir de então seria apenas um conjunto de “versões menores do que já sentiu”.
Nesse contexto, é possível perguntar-se: a inteligência artificial seria uma experiência nova capaz de servir como antídoto para o ápice da solidão? Ou, pelo contrário, atuaria justamente como fonte de potencialização da solidão? Em uma sociedade submersa na onipresença da tecnologia, como ficam características tidas como essencialmente humanas? É mais fácil lidar com os “sentimentos” de uma máquina do que com os de uma pessoa real? Prepare-se para pensar sobre tudo isso – e mais – ao acompanhar este filme sensível, criativo e provocador, típico de um diretor de obras como Quero ser John Malkovich (1999) e Adaptação (2002).
Costuma-se ver a inteligência artificial no cinema como um “corpo”, condensada em um robô. Essa concepção remete à força física, à ameaça da destruição da raça humana, a lutas homéricas com direito a explosões, efeitos especiais e muito, muito barulho. Em Ela, a inteligência artificial está concentrada no campo das emoções, de forma discreta e silenciosa. Nem por isso, o enfoque do assunto deixa de ser assustador. E inquietante.
ESCOTILHA PRECISA DE AJUDA
Que tal apoiar a Escotilha? Assine nosso financiamento coletivo. Você pode contribuir a partir de R$ 15,00 mensais. Se preferir, pode enviar uma contribuição avulsa por PIX. A chave é pix@escotilha.com.br. Toda contribuição, grande ou pequena, potencializa e ajuda a manter nosso jornalismo.