Quando o chileno Ema (2019) começa, a tela está totalmente tomada pela escuridão. Um som de pingos de chuva surge, bem baixo, discreto. Aos poucos, esse som aumenta e fica mais perceptível. É chuva. Ou, pelo menos, parece chuva. Quando a escuridão dá lugar à imagem, o que o espectador vê é um semáforo em chamas. Não era chuva. O som, portanto, que parecia uma coisa e revela-se outra, é som de fogo destruindo especificamente um objeto que simboliza ordem, segurança, organização no caos do trânsito; som de fogo queimando uma convenção social e mundialmente aceita. A cena ganha um simbolismo muito grande na medida em que a trama transcorre.
Esse “parece, mas não é”, a destruição de uma convenção tem muita relação com a personagem-título deste filme dirigido por Pablo Larraín e tudo o mais que ao redor dela orbita. O que o diretor e os roteiristas Guillermo Calderón e Alejandro Moreno fazem é usar a história da bailarina Ema (Mariana Di Girolamo) e de seu casamento com Gastón (Gael García Bernal) para falar da atual geração de jovens chilenos. Isso em uma leitura particular. Em termos mais universais, no entanto, é tranquilamente possível afirmar que o filme faz um retrato da “modernidade líquida”, tomando aqui o famoso conceito do filósofo polonês Zygmunt Bauman. É um mundo de valores pouco sólidos, que escorrem, transbordam, secam, evaporam e, sobretudo, adquirem a forma do ambiente que os contém, para usar a bela metáfora do filósofo polonês, lembrando que os líquidos tomam a forma dos recipientes que os contém.
Ema está casada com Gastón, o diretor da companhia de dança da qual ela participa, doze anos mais velho. Há um conflito de gerações aí. Ela está com seu marido, mas, ao mesmo tempo, dá início a um processo de divórcio. E arrepende-se. Os dois estão em conflito, principalmente, porque adotaram um filho, mas arrependeram-se e devolveram o menino. Isso causou muita indignação por parte de algumas pessoas próximas. Depois, eles se arrependem de ter se arrependido de adotar e, assim, acabam discutindo sobre o que aconteceu e como estaria o menino hoje. Eles usaram um filho, um ser humano em formação, para “brincar de boneca”, acusam alguns, apontando o que seria falta de maturidade e firmeza das decisões.
Ema até tem, pode-se dizer, um quê de Pedro Almodóvar. Há personagens inquietos, grande destaque à abordagem de situações eróticas e sexuais e o colorido intenso de várias cenas.
Ema tem um comportamento que tanto pode ser interpretado como libertário, livre de amarras, quanto sem orientação e rumo. Para falar desse conteúdo cheio de idas e vindas sentimentais, a forma investe em muitas cores e sons, compondo uma espécie de caleidoscópio de sensações visuais e sonoras. O filme até tem, pode-se dizer, um quê de Pedro Almodóvar. Há personagens inquietos, grande destaque à abordagem de situações eróticas e sexuais e o colorido intenso de várias cenas, características marcantes do cineasta espanhol.
Ema é cheio de símbolos, para além dos segundos iniciais envolvendo a queima do semáforo. O próprio nome da protagonista, que forma a palavra “ame” caso seja lido ao contrário, pode ser interpretado como uma metáfora do “amor de trás para a frente”, do amor que é amor mas parece que não é amor. Ela resolve adotar, abandona o filho, arrepende-se do que fez; fica com o marido, mas parece que não fica, já que mantém relacionamentos sexuais com várias outras pessoas.
Em meio a essa liquidez toda, a dança surge como escape. Quando há pressões e conflitos, Ema desliza dançando pelas ruas de Valparaíso, a cidade onde a trama acontece. A trilha sonora, sob a responsabilidade do compositor Nicolas Jaar, destaca o reggaeton. O cenário de uma das apresentações de dança lembra tanto o planeta Terra, quanto o sol ou mesmo um óvulo, fazendo referência indireta ao fato de Gastón ser infértil.
Acabamos vendo que a personagem-título é piromaníaca, ama brincar com fogo. Literal e metaforicamente. Mas se a piromania, “a ferro e fogo”, é considerada um distúrbio psicológico, na trama de Ema esse comportamento confunde-se com a poesia e os tons libertários de uma… performance artística. Coletiva. E com direito a selfies.
Da piromania cheia de significados dos segundos iniciais à cena também simbólica que encerra o filme, passando por várias apresentações sensuais e coloridas de reggaeton, Ema deixa claro que extrapola o retrato apenas da atual geração de jovens chilenos. Numa leitura mais universal, o filme desemboca mesmo em uma representação da “modernidade líquida”.
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