A cineasta curitibana Heloísa Passos vem fazendo uso de sua arte como uma espécie de complexo espelho familiar. Se no documentário Construindo Pontes (2017), a diretora mergulha na trajetória profissional do pai, o engenheiro civil Álvaro Passos, responsável por várias obras de grande importância na infraestrutura do Paraná, para redimensionar sua relação com a figura paterna, em um ajuste de contas, que vai de divergências políticas a questões muito pessoais, em Eneida, que abre hoje o Festival Internacional do Documentário Estudantil (FIDÉ), às 19h30, no Cine Passeio, ela se volta para a sua mãe.
Premiada diretora de fotografia, Heloísa direciona o olho de sua câmera, ao mesmo tempo tensa e poética, para tratar de uma questão familiar muito delicada, que já havia sido esboçado, porém não desenvolvido em Construindo Pontes.
Há mais de duas décadas, sua irmã mais velha, Maysa, com 10 meses a mais de idade do que ela, rompeu relações com a família por conta de um desentendimento em torno de uma questão patrimonial: a posse da casa da família, em Curitiba.
Sentindo-se prejudicada, e preterida emocionalmente, Maysa afastou-se e, desde então, recusou-se a falar com os pais e as irmãs, também impedindo os filhos de restabelecer qualquer contato com os avós maternos.
Após o aniversário de 80 anos de Eneida, que nunca se conformou com o silêncio e o distanciamento de Maysa, Heloísa mais uma vez recorre à sua arte, e à câmera, seu meio de expressão, para desencadear uma nova tentativa de reaproximação entre a mãe e a irmã, que nesses anos todos ficou viúva e se casou novamente com um rabino judeu ortodoxo.
Ela e a família moram em São Paulo, cidade onde Heloísa também reside. Detalhe: nestes anos todos, elas nunca se encontraram.
É muito corajosa a decisão da diretora curitibana, mas sobretudo de sua mãe, de documentar, em detalhes bastante íntimos, tanto a esperança quanto a dor de Eneida.
É muito corajosa a decisão da diretora curitibana, mas sobretudo de sua mãe, de documentar, em detalhes bastante íntimos, tanto a esperança quanto a dor de Eneida, foco da câmera de Heloisa, que a retrata em sua plenitude, revelando toda a complexidade de uma mulher ao mesmo tempo frágil e corajosa, alegre e muito triste. Álvaro, desta vez, é coadjuvante, aparecendo muito pouco em cena, embora compartilhe com a mulher o mesmo sofrimento.
Em belíssimos diálogos, de surpreendente espontaneidade, entre mãe e filha, ficamos sabendo que Eneida casou-se virgem, aos 27 anos, e, como a maior parte das mulheres de sua geração, se sujeitou ao patriarcado, inclusive na situação que conduziu ao afastamento da filha. Não teve coragem de se impor.
Eneida, assim como Construindo Pontes, verte afetos e subjetividades. Há muita beleza no despudor da diretora de permitir que olhemos, sem muitos filtros, em seu espelho familiar. Em alguns momentos, nos sentimos um pouco invasores, constrangidos diante da privacidade exposta na tela, com a qual Heloísa nos presenteia. Impossível não nos vermos em seu filme.
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