Ninguém sabe ao certo quando termina a juventude e se inicia a idade madura. A fronteira parece cada vez mais flexível, imprecisa. O diretor e roteirista norte-americano Noah Baumbach quis investigar o que as pessoas sentem diante desse ponto de virada, que muitos teimam em não enxergar, com medo de constatarem que já não são possíveis tantas correções de percurso e muitos dos planos devem ser redimensionados.
Enquanto Somos Jovens, o mais recente longa-metragem de Baumbach, em cartaz desde a semana passada nos cinemas brasileiros, materializa essa inquietação por meio de um interessante confronto entre gerações, tema recorrente em boa parte de sua obra, que conta com filmes muito pessoais como A Lula e a Baleia (2005), Margot e o Casamento (2007) e Frances Ha (2012), todos povoados por personagens intelectualizados, de uma classe social mais favorecida, às voltas com crises existenciais e relacionamentos amorosos e familiares turbulentos.
No centro da narrativa estão Josh (Ben Stiller, de Uma Noite no Museu) e Cornelia (Naomi Watts, de Cidade dos Sonhos), casal na casa dos 40 anos, presos a um limbo existencial: ele, um documentarista outrora promissor, há anos se digladia com o projeto de um filme inacabado; ela vê todas as amigas se tornarem mães, e percebe que talvez já não haja mais tempo iniciar uma família. A vida dos dois, imersa em um marasmo sobre o qual nenhum dos dois quer falar muito, dá uma reviravolta com a entrada em cena de Jamie (Adam Driver, da série Girls) e Darby (Amanda Seyfried, de Mamma Mia!).
Em lados opostos dessa discussão, Josh e Jamie representam dois polos que talvez não existam de forma tão cristalina na vida real, mas servem de pano para muitas mangas em Enquanto Somos Jovens.
Os jovens namorados, na casa dos 20 anos, são alegres, leves e personificam a energia criativa que parece faltar a Joshua e Cornelia. Baumbach os moldou a partir da observação atenta de representantes da geração hipster, em Nova York, que têm todo um discurso de autenticidade, rejeitando novidades em nome de símbolos do passado, como os discos de vinil, as fitas cassete e VHS, os jogos de tabuleiro, comida orgânica. O diretor os retrata com certo distanciamento exótico – os personagens são algo caricatos – e cinismo, expondo suas idiossincrasias e o caráter cosmético da forma como se apresentam ao mundo.
Josh – mais um homem inseguro e às voltas com o fracasso na galeria dos personagens de Stiller – é seduzido pela adulação explícita de Jamie, que se apresenta a ele como admirador de um documentário dirigido por ele anos atrás. O rapaz, também aspirante a diretor, aos poucos lhe devolve a autoconfiança e a alegria criativa, perdidas ao longos dos últimos anos. Cornelia, em princípio mais reticente, aos poucos também se deixa envolver pelo casal, que a faz se sentir mais jovem e espontânea.
Mas a lua-de-mel dura pouco. Jamie se revela bem menos desinteressado quando ele e Josh firmam uma parceria profissional: toda a autenticidade defendida pelo mais jovem se dilui, quando ele se mostra disposto a manipular a realidade, sem muitos escrúpulos, para emprestar o máximo de dramaticidade a seu filme. Isso choca Josh, um purista, que se descobre um idealista ingênuo, bem menos preparado a enfrentar a realidade que seu companheiro.
Baumbach, que já foi comparado a Woody Allen por sua habilidade na carpintaria dos roteiros e no universo que leva a seus filmes, estabelece discussões muito interessantes. É muito pertinente seu questionamento sobre a relevância dos documentários em um momento em que todos produzem imagens, representações do real o tempo todo, e até que ponto se pode interferir no processo de significação dessa suposta verdade quando se pretende fazer uma obra de não ficção.
Em lados opostos dessa discussão, Josh e Jamie representam dois polos que talvez não existam de forma tão cristalina na vida real, mas servem de pano para muitas mangas em Enquanto Somos Jovens.
‘Enquanto Somos Jovens’ reflete sobre a originalidade em tempos de Google
Por Maura Martins
Por trás da aparente leveza de Enquanto Somos Jovens, de Noah Baumbach, há uma reflexão bastante densa sobre o choque entre gerações e a nem sempre reconhecida idealização da juventude. A chamada geração X – que encontrou sua representação máxima no cinema em Caindo na Real, dirigido por Ben Stiller em 1994 – finalmente cresceu e agora se confronta com a “conta” cobrada pelo tempo. Afinal, o que fazer quando o futuro finalmente chegou e os nossos ideais de sucesso vieram a óbito? Como lidar com o fato que, para aqueles que agora chegam, tudo, a princípio, parece já estar pronto, ao alcance de uma consulta no Google?
Estes conflitos vêm à tona quando um casal conhece outro mais jovem, hipsters repletos de expectativas e projetos. A convivência entre os casais (o primeiro na casa dos 40, o segundo beirando os 20) será de aparente deslumbramento para ambos – os mais velhos veem nos outros uma espécie de conforto possível frente aos amigos contemporâneos, mais adequados a um estilo “tradicional” de vida, como ter filhos e adequar sua rotina a eles; os mais novos parecem ver nos mais velhos uma espécie de futuro possível. Obviamente, este é apenas o palco inicial para que uma série de embates ocorra.
Ainda que o filme talvez peque em alguns momentos pelo didatismo exagerado – os elementos cômicos do personagem de Ben Stiller (que retorna como protagonista nesta espécie de sequência de sua obra de estreia como diretor) às vezes trazem a impressão que assistimos à franquia Entrando em uma fria -, trata-se de uma obra provocativa em vários aspectos. Vemos aqui discussões sobre os novos ideais de sucesso, quando todos estão em busca da almejada satisfação pessoal (que não se mede, necessariamente, por dinheiro); as atuais dinâmicas das relações amorosas (cujos laços por vezes parecem tão profundos quanto uma poça d’água); as mudanças nas noções de autoria e originalidade em um mundo reconfigurado pelas mídias digitais.
Há ainda uma discussão mais sutil, mas importante, explicitada no perturbador personagem de Adam Driver, um jovem documentarista que, sob o disfarce de sua aura cool, calcula friamente todos os passos que deve dar rumo à sua consolidação profissional. Trata-se de um realizador que, ao buscar a realização de seu grande filme, coloca em xeque várias das convicções éticas dos profissionais da geração antecessora, personificada em Stiller. Sempre com uma câmera Go Pro em punho, está disposto a qualquer coisa para capturar o momento em que aquilo que há de mais genuíno nas relações humanas – a briga que explode, o zoom que capta a lágrima que surge da emoção. Registra tudo sem jamais, é claro, nem pensar em pedir licença.
No confronto dos personagens, uma frase ecoa: “quando tudo é filmado, o que será do documentário?”. Neste importante questionamento sobre a autenticidade de uma geração para quem a performance de si mesmo é central (basta ver o quanto, hoje, selfies e outras formas de autorregistro se popularizaram) reside a força de Enquanto somos jovens.
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