É bem promissor o prólogo de Kong: a Ilha da Caveira, longa-metragem protagonizado pela nova encarnação do mítico gorila tamanho família, um dos símbolos mais perenes do cinema fantástico e de aventura. O filme, que estreia hoje no Brasil, nos leva de volta ao ano de 1944. Durante a Segunda Guerra Mundial, “em algum lugar do Pacífico Sul”, dois pilotos, um japonês e um norte-americano, aterrissam de pára-quedas em uma ilha deserta, após um combate aéreo. O embate continua em terra firme: além dos punhos, utilizam pistolas, punhais e até uma espada, até o confronto ser interrompido pela aparição inesperada e gigantesca do personagem-título. O rei gorila chegou! Corta.
A ação do filme de Jordan Vogt-Roberts (de Os Reis do Verão, de 2013) dá um salto temporal até 1973, momento no qual o governo do presidente republicano Richard Nixon se vê às voltas com a derrota na Guerra do Vietnã e denúncias que eventualmente irão desembocar no escândalo Watergate. Em Washington, D.C., Bill Randa (o ótimo e muitas vezes subaproveitado John Goodman), tenta convencer um senador a liberar recursos para financiar uma missão “científica” a uma certa ilha do Pacífico (adivinhe qual?), onde algo muito intrigante está acontecendo há bastante tempo.
Conseguida a verba, a próxima parada é o Vietnã. Lá, o tenente-coronel Packard (Samuel L. Jackson) é um poço de mágoa. Revoltado com o que ele chama de “desistência” da guerra, ele e seus homens fazem os preparativos para retornar aos Estados Unidos. Para sua felicidade, recebem uma missão inesperada: acompanhar e proteger a expedição de Randa à misteriosa ilha. Terá de tolerar na comitiva, contudo, a presença inesperada e incômoda de Mason Weaver (Brie Larson, vencedora do Oscar de melhor atriz por O Quarto de Jack), uma fotógrafa pacifista cuja atuação teria colaborado para a decisão de interromper a participação norte-americana na guerra.
Até aí, o filme continua bastante promissor, marcando pontos por se preocupar em estabelecer um contexto histórico e político inesperado, crítico até, com personagens um pouco mais complexos. Para chegar à tal ilha, Packard e seus soldados, que escoltam a expedição a bordo de helicópteros, têm de atravessar nuvens espessas e tempestades, que circundam o arquipélago paradisíaco. Para enfrentar os inevitáveis percalços que enfrentarão na selva, é contratado pela comitiva o ex-militar britânico Conrad (Tom Hiddleston, o Loki da franquia Thor), que agora ganha a vida como mercenário, embora negue ser essa sua nova ocupação.
Chegando à ilha, a expedição é recebida por Marlow (um ótimo John C. Reilly, de Chicago), preso há décadas na ilha, onde desempenha o papel de uma espécie de líder (e prisioneiro) da população nativa. Inevitável reconhecer neste cenário, também marcado pelos efeitos destrutivos da arma química napalm (o agente laranja), ecos (distorcidos) de Apocalipse Now (1979), clássico de Francis Ford Coppola sobre a Guerra do Vietnã. A citação talvez não tenha sido uma boa ideia: soa mais como paródia do que como uma homenagem.
Na três versões de King Kong (1933, 1976, 2005), o personagem-título tinha a função alegórica de ser, em um primeiro momento, uma criatura assustadora, que aos poucos ia sendo revelada ao espectador, primeiro causando terror, para depois gerar empatia, por representar uma espécie de símbolo de uma natureza ultrajada pela ambição humana.
A comitiva descobre que o local, por alguma razão não explicada, tem um ecossistema muito peculiar. Os animais são todos gigantescos. Para a população local, Kong é o rei, quase um Deus, que os protege de uma ameaça subterrânea – lagartos ferozes, carnívoros, que ameaçam dizimar todos os seres viventes, caso um dia consigam aniquilar o gorilão. É neste momento que o filme de Vogt-Roberts começa a desandar.
Na três versões de King Kong (1933, 1976, 2005), o personagem-título tinha a função alegórica de ser, em um primeiro momento, uma criatura assustadora, que aos poucos ia sendo revelada ao espectador, primeiro causando terror, para depois gerar empatia, por representar uma espécie de símbolo de uma natureza ultrajada pela ambição humana. Brie Larson, em Kong: A Ilha da Caveira, encarna o papel antes vivido por Fay Wray, Jessica Lange e Naomi Watts. O da bela que enternece o coração da fera. Aqui ela é uma personagem mais potente, menos passiva, mas poderia ir mais longe. O problema é que, ao não se dar ao trabalho de dar a Kong o seu devido protagonismo, o mostrando cedo demais na trama, e já na função de uma figura positiva, e até mesmo heroica, a tensão do filme se esvazia. Os lagartos pré-históricos, que representariam a real ameaça, são criaturas sem personalidade alguma, e visualmente toscas.
Mais assustadora, talvez, seria a figura belicosa de Packard, que insiste, doentiamente, em acreditar que a guerra continua, e a violência é a única forma de resolução de conflitos. Pena que Samuel L. Jackson, ao longo dos anos, tenha se tornado refém de seus personagens, cada vez mais parecidos entre si e algo caricatos, replicando ad infinitum traços de Jules Winnfield (que viveu em Pulp Fiction- Tempo de Violência), seu papel mais célebre.
O roteiro de Kong: A Ilha da Caveira, talvez na ânsia de fazer amplo uso dos efeitos visuais e do 3D, se perde em situações desinteressantes, desperdiçando personagens que poderiam render muito mais. Randa sai de cena de maneira tão precipitada que é inevitável nos perguntarmos por que um ator tão talentoso como John Goodman pode ser tão desperdiçado. Os personagens de Hiddleston e Brie Larson, atores de primeiro time, aos poucos também se transformam em fiapos unidimensionais. Assim como Kong, que urra, bate no peito, morde, bate e esfola, mas não assusta. E nem comove ninguém.
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