Em 1969, Clarice Lispector publicou um pequeno romance chamado Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres, considerado por parte da crítica (e por ela mesma) uma obra menor em sua produção. Afinal, diferente do que acontecia em outras obras da escritora, que tematizavam o processo inerentemente solitário às personagens femininas que lhe foram tão características, em Uma Aprendizagem havia uma mulher descobrindo o amor por um homem.
Mas o romance – que, como tudo o que Clarice escreveu, tange o indizível – é muito mais que uma história de amor. E é isto que o filme O Livro dos Prazeres, dirigido por Marcela Lordy, busca colocar em linguagem audiovisual: a sofrida busca de Lóri por si mesma a partir da intersecção com o outro.
Lançado em 2020, o filme foi um dos destaques da 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e recebeu Menção Honrosa no 22º BAFICI, além do prêmio de melhor atriz para Simone Spoladore. O longa conta a história de Lóri (vivida por Spoladore), uma professora de escola pública que se muda do interior para o Rio de Janeiro, onde vive sozinha em um apartamento herdado pelos pais.
A vida de Lóri é extremamente solitária, em muitos sentidos. O seu grande apartamento vazio, de frente para o mar, expressa esta perspectiva de isolamento. Ela conecta-se pontualmente com alguns parceiros e parceiras por meio de relações sexuais, mas não cria laços afetivos com ninguém, nem com sua família.
As coisas começam a mudar quando ela conhece por acaso Ulisses, um professor de filosofia argentino que parece disposto a conduzi-la para uma aprendizagem. O que ela está tentando descobrir é como entregar-se a ele (ou seja, ao amor) sem perder-se de si mesma.
‘O Livro dos Prazeres’: os desafios da adaptação para o cinema
Parece difícil imaginar em como transpor a experiência de um livro de Clarice, cuja grande riqueza está justamente na jornada interna dos personagens, para a linguagem audiovisual. A diretora Marcela Lordy faz esta transição de forma rica e livre, sem se preocupar com o excesso de fidelidade à obra original.
É preciso destacar que o filme, que é esteticamente belíssimo, consegue se transformar em uma experiência imersiva no universo de Lóri por conta de várias decisões acertadas durante a produção.
Isso se revela, por exemplo, na escolha deliberada em não se apoiar prioritariamente em uma narração em off, o que facilitaria a exposição de trechos do livro. Trata-se de uma decisão acertada, que faz com que possamos mergulhar em um filme original e introspectivo, fazendo jus a Clarice.
Há algumas outras liberdades tomadas em relação à obra. No filme, Ulisses (vivido pelo ator argentino Javier Drolas), embora se defina numa cena como “um pouco machista, preconceituoso e egocêntrico”, tem uma sexualidade mais fluida e aberta. Cabe a ele, dentro desta narrativa, um papel de condução paciente de Lóri por caminhos que ela precisa percorrer sozinha.
Outra questão é que o filme tem mais personagens que o livro. Em Uma Aprendizagem e o Livro dos Prazeres, há basicamente Lóri e Ulisses, mas o longa-metragem traz a figura do irmão da professora e outros personagens tangenciais que cruzam por seu caminho.
O mergulho na introspecção de Lóri
É preciso destacar que o filme, que é esteticamente belíssimo, consegue se transformar em uma experiência imersiva no universo de Lóri por conta de várias decisões acertadas durante a produção. Para começar, na escolha da atriz curitibana Simone Spoladore para o papel central.
Ela consegue nos entregar uma Lóri angustiada e algo tímida, cujos conflitos se expressam por meio da cenografia e da direção de arte do filme. A disposição dos móveis de sua casa, as cores e os modelos das suas roupas, e o detalhe sutil da maquiagem borrada e exagerada – notada pelo observador Ulisses – são elementos que nos trazem esta sensação de despertencimento, de incapacidade de colocar-se com limites claros para o outro.
E vale lembrar aqui da belíssima metáfora do mergulho na água, que Lóri não consegue fazer. Ulisses sabe que ela não está pronta para encontrá-lo (o que, no livro e do filme, significa a ocorrência de uma relação sexual entre os dois) pois ela tem medo de entrar na água.
Enquanto isso, ele apenas espera – em uma brincadeira inspirada em que há muito de Penélope dentro desse Ulisses. Há algo muito rico em pensarmos que este papel de uma condução quieta e sábia venha de um homem e não de uma mulher.
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