O longa Pobres Criaturas desvenda-se como uma obra de complexidade intrincada, uma fábula Frankensteiniana com fortes tons feministas que não emerge da precisão cirúrgica, da ciência, mas, sim, da voracidade desenfreada de sua protagonista pela própria existência. Esse épico fantasmagórico, meticulosamente esculpido pelo escritor Alasdair Gray em seu romance e posteriormente reinventado pelo cineasta grego Yorgos Lanthimos (de A Favorita e O Lagosta), desenrola-se em cenários tão surreais quanto hipnóticos, refletindo a imaginação exuberante que permeia seus personagens.
No epicentro da trama, encontramos Bella Baxter, a protagonista magistralmente interpretada por Emma Stone. Bella compartilha sua morada com o respeitado, porém excêntrico, cirurgião Godwin Baxter (William Dafoe, genial), cujo semblante ostenta cicatrizes marcantes, que não se limitam à sua aparência – ele foi vítima de sucessivos abusos impetrados pelo próprio pai, também um cientista.
Godwin, valendo-se de métodos cujos detalhes aguardam revelação ao longo da narrativa, traz Bella de volta à vida após uma tentativa de suicídio. A residência torna-se palco de experimentações biológicas, incluindo hibridismo perturbadores como a fusão entre um buldogue e uma ave, que vagam pelos corredores enquanto Bella, entre eles, caminha expressando-se como uma criança, envolta por um peculiar interesse infantil pelo mundo.
Na tentativa de zelar por Bella, Godwin convoca seu protegido Max McCandles, interpretado por Ramy Youssef, que se apaixona pela protagonista e a pede em casamento. Um consentimento dado, mas que se desfaz diante das artimanhas do lascivo advogado Duncan Wedderburn, interpretado por um Mark Ruffalo hilariante. A curiosidade de Bella evolui rapidamente para um impulso hedonista, enxergando em Max uma vida contida e reprimida, enquanto Duncan promete viagens grandiosas e uma vida sexual mais emocionante, pulsante, algo que Bella denomina de “salto furioso”.
A trama se desenrola conforme Bella e Duncan embarcam em uma jornada de Londres a Lisboa e, finalmente, a Paris. O comportamento caprichoso de Bella, inicialmente atrativo, transforma-se em desconcerto e embaraço para Duncan. À medida que ela explora mais sobre a vida e o mundo, sua odisseia torna-se uma observação perspicaz sobre o amor, o sofrimento e a experiência feminina no mundo.
‘Pobres Criaturas’: equilíbrio
O que confere a Pobres Criaturas um status cinematográfico monumental é a maestria de Lanthimos ao equilibrar rigor estético, habilidade narrativa, entretenimento com temas intrinsecamente complexos e muito relevantes na contemporaneidade.
O que confere a Pobres Criaturas um status cinematográfico monumental – que será lembrado por muito tempo – é a maestria de Lanthimos ao equilibrar rigor estético, habilidade narrativa, entretenimento, com temas intrinsecamente complexos e muito relevantes na contemporaneidade.
Pobres Criatura é um espetáculo para olhos e ouvidos. Direção de arte e figurinos, que transitam entre o expressionismo e o surrealismo, mas jamais dissociados da trama, se somam à direção de fotografia inventiva, brilhante, de Robbie Ryan (de A Favorita), que faz usos potentes do preto e branco e da cor, de distorções e da grande angular. Tudo isso está em diálogo criativo com o design de som e a excepcional trilha sonora de Jerskin Fendrix, muitas vezes dissonante, mas também lírica, climática.
A performance de Emma Stone, que incorpora uma jornada heroica de autoconsciência, é espetacular e está no coração do filme. Mais do que tudo, Pobres Criaturas nos desafia, se não nos obriga, a encarar a vida com uma renovada vitalidade, instigando uma reflexão profunda sobre os matizes da existência e normas sociais que nos encarceram e acabam por fazer de nós o que somos.
Após vencer o Leão de Ouro de melhor filme no último Festival de Veneza, Pobres Criaturas venceu os Globo de Ouro de melhor filme (comédia ou musical) e atriz (Emma Stone), também nessa categoria. Está indicado a 11 Oscar, entre eles melhor filme, direção, roteiro adaptado, atriz (Emma Stone) e ator coadjuvante (Mark Ruffalo).
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