Em uma das inúmeras cenas magníficas de Roma, Sofia (Marina de Tavira), patroa da protagonista Cleo (Yalitzia Aparício) chega bêbada em casa e, trançando as pernas, diz à empregada que todas as mulheres estão fadadas a estar sós. De fato, no extraordinário novo longa-metragem do diretor mexicano Alfonso Cuarón (de Gravidade), já em exibição no canal de streaming Netflix, todos os homens adultos marcam presença pelo abandono, e sobretudo pela covardia.
É nesse mundo de profunda solidão que se passa Roma, uma espécie de ajuste de contas entre Cuarón e sua infância. Cleo é inspirada na babá do cineasta, Liberia “Libo” Rodriguez, mulher de origem mixteca que por muitos anos trabalhou para sua família na Cidade do México, desempenhando papel de vital importância em sua formação afetiva. Como no filme, ela foi mais presente nessa fase da vida do cineasta do que a mãe, repetindo um paradigma recorrente em famílias de classe média latino-americanas. Um resquício da era colonial e da escravidão africana e indígena nas Américas.
A ação de Roma transcorre ao longo de um ano no início da década de 1970, período no qual tanto a vida de Cleo quanto a de seus patrões passam por dramáticas reviravoltas. Natural de Oaxaca, estado ao sul do México, a empregada, além de babá dos filhos de Sofia e Antônio (Fernando Grediaga), um casal em crise, é uma espécie de faz-tudo, auxiliando a mais experiente Adela (Nancy García García), com quem conversa em dialeto mixteca: Cleo lava e passa roupas, arruma os quartos, coloca as crianças para dormir e as acorda, leva e busca o mais novo na escola, limpa os excrementos do cão da família.
O filme ecoa o cinema neorrealista italiano das décadas de 40 e 50, e as lentes de Cuarón (ele também assina a notável fotografia em preto e branco) captam a rotina da casa, situada no bairro que dá título ao longa, nos mínimos detalhes, importantíssimos. O diretor opta pelo uso de panorâmicas, travellings e pela profundidade de campo, evitando ao máximo cortes que restrinjam ou conduzam o olhar de quem assiste a Roma, o trazendo para dentro das cenas. O espectador vai enxergar o que bem entender.
Seguindo à risca a cartilha neorrealista, Cuarón escolheu para o papel de Cleo a estreante Yalitzia Aparício, oriunda da mesma região que a personagem. A jovem atriz empresta, além de seus traços indígenas, incrível autenticidade à protagonista. Sua interpretação naturalista, da contenção dos gestos ao sorriso acanhado, passando pela expressividade assustada do olhar, transborda verdade.
O filme ecoa o cinema neorrealista italiano das décadas de 40 e 50, e as lentes de Cuarón (ele também assina a notável fotografia em preto e branco) captam a rotina da casa, situada no bairro que dá título ao longo, no mínimos detalhes.
Tímida e inexperiente, Cleo deixou não se sabe há quanto tempo sua pequena localidade para servir, como tantas e tantas jovens latino-americanas. Estabelece com a família vínculos de afeto e dependência marcados pela ambiguidade. A mesma patroa que a afaga com ela esbraveja sem pudores. Essa tênue linha que separa a familiaridade afetiva da servitude costura as relações entre os personagens da trama e lhe serve, também, como fio condutor. Quem é, afinal, Cleo para aquela família?
Em um outro belíssimo momento do filme, a empregada e o filho caçula (alter ego de Cuarón?), de quem é mais próxima, estão no terraço do imóvel, espaço onde a roupa é lavada e estendida, e que também serve de playground improvisado para as crianças, superprotegidas – elas nunca aparecem nas ruas. O menino, excluído de uma brincadeira por um dos irmãos mais velhos, compartilha um instante de profunda intimidade com a babá. Deitados sob o céu, dizem que gostariam de estar mortos. Na voz de Cleo, a fala é mais dolorosa, por deixar entrever sua verdade. Ela se sente ninguém, invisível.
Quando se descobre grávida e abandonada pelo primeiro namorado, Fermín (Jorge Antônio Guerrero), Cleo é cercada por uma sucessão de acontecimentos desestabilizantes: um terremoto, um incêndio, uma manifestação popular com desfecho violento e trágico. A personagem, aprisionada em sua condição de subalterna, não parece saber como reagir. Sofre em silêncio. Essa dor que (quase) nunca explode em cena é dilacerante.
Arrebatador, Roma venceu o Leão de Ouro de melhor filme no último Festival de Veneza, já ganhou os prêmios de melhor filme das associações de críticos de Nova York e Los Angeles e é um dos nove pré-selecionados para Oscar de melhor filme em língua não inglesa. Deve emplacar múltiplas indicações ao prêmio da Academia, inclusive na categoria principal, de melhor filme. Merece tudo que ganhar e muito mais.
Roma é uma obra extraordinária que coroa a carreira do mais talentoso cineasta mexicano de sua geração, superior a seus amigos Alejandro Gonzalez Iñarritú e Guillermo del Toro. Tem intenso diálogo com o grande E Sua Mãe Também (2001), cujo foco é a complexa teia de relações sociais e raciais em seu país, mas também faz citações mais ou menos sutis a outros títulos da filmografia do diretor, como A Princesinha (1995), Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban (2004), Filhos da Esperança (2006) e Gravidade (2013), pelo qual venceu o Oscar de melhor direção. Basta procurar.
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