As coisas vão se acumulando. E você vai engolindo. São os problemas financeiros que atormentam todo mês. São os vizinhos que não te deixam dormir. São os parentes que se intrometem na sua vida. São os olhos da justiça que enxergam só um lado. É a falta de um afeto e o excesso de trabalho. São os pequenos incômodos diários que se amontanham dentro de nós até o momento de explodir, seja externamente, perdendo a compostura, ou internamente, quando o coração para.
A solução é simples, mas nem sempre vamos atrás de uma maneira de descarregar tudo isso. Uma volta na praia, o contato com a natureza, a convivência com os amigos, o carinho da família, o sexo, a prática esportiva e a proximidade com a arte são alguns dos anestésicos para encarar a vida que, muitas vezes, é dose.
O filme Aquarius, de Kléber Mendonça Filho, e o disco Amanhã, de Símio, nos mostram cada um ao seu modo que dar valor ao que o dinheiro não compra é, cada vez mais, um ato de resistência.
Metáfora da sociedade brasileira, Aquarius desenvolve essa visão a partir da personagem Clara, uma intelectual aposentada que mora em um prédio na praia de Boa Viagem no Recife e passa a sofrer um assédio cada vez mais intenso para que seu apartamento seja vendido para uma construtora que tem o objetivo de demolir o prédio no qual moram muitas das suas memórias para dar lugar a um edifício mais moderno.
A oferta financeira é grande, mas a personagem vivida por Sônia Braga se recusa a recebê-la porque, para ela, o valor do apartamento é maior do que o seu preço.
Esse é o impasse gerado pelo filme, que nos faz sentir o incômodo causado pelo jovem Diego para desestabilizar Clara e convencer ela a vender o imóvel. E a cada nova tentativa há um novo desconforto, já que a personagem que removeu um seio por conta de um câncer e passou uma parte da vida privada da convivência dos filhos só quer agora viver em harmonia.
A maneira de fazer isso seria por meio dos seus discos, sua família e a companhia da empregada Ladjane, que perdeu seu filho em um acidente de carro e é a responsável por uma das cenas mais tocantes da película quando interrompe uma conversa de Clara com os seus familiares no momento em que reviram memórias afetivas, o principal fator que faz Clara querer continuar vivendo no imóvel.
‘Tive uma visão olhando o mar sentado na areia / Num instante senti o sangue pulsando na veia / O sentimento foi como se eu tivesse despertado / Meditei mais um poco pra vê se eu não tava errado / Família é base, na mente veio a frase / Pra viver por inteiro e não ficar só no quase / Só pare pra pensar no que está em primeiro plano / E se as coisas evoluem quando passa cada ano / E nessa corrida o troféu é um sorriso / O jogo vira num minuto e dá lugar pro improviso’ – Símio – Livre
Catártico, Aquarius segue a mesma linha de O Som ao Redor, que pode ser visto com um gérmen da obra mais atual. Isso porque em ambos as situações de impasse e tensão vão nos deixando inquietos até o final, quando tudo “se resolve”.
Nós, acostumados com as explosões e a ação hollywoodiana, talvez possamos nos incomodar e remexer na poltrona durante a sessão de 2 horas e 25 minutos, mas ao seu término conseguimos perceber que cada segundo se torna necessário para sentir o quanto Aquarius é um filme relevante, glorioso e fundamental.
Paulo Camargo, editor d’A Escotilha, resume bem a sua magnitude: “Assistir a ‘Aquarius’ é um dever cívico”.
Isso se dá pelo mesmo motivo que faz do disco Amanhã, do curitibano Símio, que antes usava o nome de Luís Cilho, se tornar uma obra importante: o fato de se colocar como uma forma de resistência aos bens materiais e dar valor ao que realmente faz diferença.
Encerrando a trilogia composta antes por Ontem e Hoje, o recente disco nos mostra que o amanhã pode ser melhor se voltarmos à essência.
Inscrito no gênero do rap, no qual ainda é possível encontrar ideias que valorizam o dinheiro, as roupas e a briga por espaço, o MC curitibano se mostra superior a isso ao criticar a ganância que gera a violência em “Bala Perdida” (“Eu te pergunto então quem financia esse tiro / o sistema sufoca, se não tem ar não respiro, atiro / Capital consome, tira a vida dos homens / plantando correria e colhendo fome”).
Maduro, o disco mostra uma evidente evolução com relação aos trabalhos anteriores, o que podemos supor que tenha vindo com o passar do tempo. Entretanto, o próprio fato de algumas temáticas ainda existirem no gênero em nível nacional e internacional mostra que a evolução não é para todos, o que se reflete também em Aquarius, uma vez que mesmo pessoas próximas como a filha de Clara não são capazes de entender os seus motivos para continuar a viver no lugar que abriga as suas memórias mesmo que tenha a posse de outros imóveis
A relação com o filho, aliás, talvez seja o principal fator que fez com que Símio trouxesse essa visão para o disco, já que a paternidade parece ter lhe trazido valores que sempre estiveram presentes em sua mentalidade, mas que afloraram após ampliar a sua linhagem. É o que se vê na letra de “Livre”: “Hoje resolvi dar atenção pro que interessa / Porque a vida é muito curta pra ter que viver com pressa / uns com 30 anos se achando velhos / uns com 60 dando um foda-se pros critérios / Minha versão de liberdade vem no groove / Todo dia quando acordo luto por um dia susse / A vida renovou quando nasceu o meu filho / Prioridade é saúde, quem não liga tá perdido”.
Essa maturidade que metamorfoseou Luis Cilho e o transformou em Símio se mostra não só nas suas letras, mas também musicalmente. É o que se nota no fato de Amanhã não se limitar só ao rap, mas também incorporar outros instrumentos e ritmos por meio das guitarras de Leandro Dissenha (em “Livre”) e Thomas Kossar (“Bala Perdida” e “Carranca”), o baixo de Renato Rigon (“Um Sorriso”), as flautas de Luiz Porto (“Hora do Relax”) e a participação com tudo de Gusta Proença (Backing Vocal, SFX, Percussão, Trompetes e Flautas em “Jeitinho Brasileiro”).
Há ainda o piano rhodes de Ricardo Passos em “Camomila”, faixa que ganhou um videoclipe e como Clara valoriza a música como algo que, tal qual as melhores coisas da vida, não tem dinheiro que pague.