Parece lenda urbana, mas aconteceu.
Para quem não viveu, a história está distante e, assim, a relevância dos fatos vai se perdendo enquanto a sua veracidade é questionada. Mas qualquer um que tenha, no mínimo, passado os olhos pela história do hip-hop já ouviu falar sobre o seu nascimento estar ligado ao fim da guerra entre gangues no Bronx.
Pois é verdade. O hip-hop ajudou a parar uma verdadeira guerra.
O documentário Rubble Kings – Os Reis do Bronx, disponível na Netflix, se dedica a essa parte da história do movimento e joga luz sobre a verdadeira guerra que existia no bairro que virou o berço da cultura. Dessa forma o diretor Shan Nicholson mostra por meio de entrevistas e imagens de arquivo a origem dos conflitos e os seus detalhes mais minuciosos até chegar ao seu fim, que culmina com o nascimento do hip-hop.
Mas antes, como o caos é também força geradora, é nele que tudo se inicia. Por isso, o audiovisual apresenta os anos 60 como um período de revolução social e cultural, mas que termina com a guerra do Vietnã, um racismo cada vez mais acentuado e a morte do presidente Kennedy e de Martin Luther King, fazendo com que a esperança de muitos se esvaísse.
Com esse esgotamento foram embora também as indústrias e os empregos como explica no videodocumentário o filósofo e escritor Marshall Berman, que apresenta a Nova York dos anos 70 como tendo uma ascensão da cena cultural, o término do World Trade Center e o primeiro campeonato vencido pelo New York Knicks. Por outro lado, o Bronx se tornava o maior símbolo de decadência urbana por conta do planejamento feito pelo engenheiro Robert Moses, que também fez o projeto de construção do metrô de São Paulo, e tornou o Bronx um ponto de passagem para uma via expressa que desconsiderou as casas e as pessoas que lá viviam.
Rubble Kings mostra como a cultura floresceu em meio a um ambiente caótico e mudou a vida de diversas pessoas.
Com isso, em 10 anos o número de homicídios cresceu quatro vezes, enquanto mais de 30 mil prédios foram incendiados criminalmente e consequentemente abandonados, assim como ocorreu com toda a região para aqueles que tinham essa opção.
No entanto, para aqueles que foram obrigados a permanecer o que sobrou foi a violência, as ruas, o descaso do governo, a corrupção da polícia e o surgimento da heroína, cada vez mais buscada conforme os sonhos iam sendo esquecidos.
A solução para buscar proteção em um local onde o homicídio se tornou a principal fonte de renda era se unir em grupos que fizessem por si, caso contrário, as pessoas se tornavam vítimas daquele ambiente selvagem no qual a disputa por território e as cores de um grupo poderiam determinar o fim da vida que se encerrava sem a dignidade de ter o corpo recolhido por uma ambulância, enquanto a polícia nem mesmo se dava ao trabalho de investigar e fazia de tudo para sair dali o quanto antes.
Desse contexto geral, Rubble Kings passa a se dedicar a questões mais específicas como a função das mulheres nas gangues, a hierarquia, os rituais de iniciação, bem como a expansão por outras partes de Nova York.
Complementar aos documentários Fresh Dressed, Hip-hop Evolution e The Freshest Kids, Rubble Kings confere importância especial ao grupo dos Guetto Brothers, gangue que surgiu como uma organização e que buscava agir como um movimento político assim como os Black Panthers e marcar a identidade porto-riquenha da mesma forma que os Young Lords.
Por ser uma gangue, os Guetto Brothers precisavam impor respeito nas ruas de forma violenta, mas, por outro lado, a sua visão diferenciada com relação aos demais grupos fez com que chegasse a aproximadamente 2.500 membros no Bronx e se expandisse para outras regiões como Manhattan, Brooklyn e Queens.
Criada por Benjamin “Benjy” Melendez e Carlos “Karatê Charlie” Suarez, a diretoria dos Guetto Brothers se completava com Cornell “Black Benjie” Benjamin, que passou a atuar na organização como um embaixador pela paz e um dos responsáveis por mediar os conflitos entre as gangues.
E foi justamente tentando apaziguar um conflito entre rivais que Cornell foi assassinado, o que fez com que o conflito saísse do controle e estivesse prestes a se tornar o ponto mais violento da guerra entre as gangues quando os líderes restantes dos Guetto Brothers decidiram reunir os rivais e criar um tratado de paz.
Assim, as block parties da qual Kool Herc foi o pioneiro ganharam o espaço das disputas de território da mesma forma que as cores das gangues deram lugar ao graffiti e fizeram com que os integrantes das gangues se tornassem fundadores do movimento hip-hop, termo cunhado pela Zulu Nation, organização fundada pela antiga gangue Black Spades em articulação com líderes de outros grupos.
Desse modo a arte conseguiu acalmar “feras selvagens” e tornar disputadas violentas em batalhas de MC e de breaking.
Fundamental para entender a relevância do Hip-hop, bem como compreender os fatos que levaram ao seu nascimento, Rubble Kings mostra como a cultura floresceu em meio a um ambiente caótico e mudou a vida de diversas pessoas, demonstrando como e porquê o movimento tem tamanha influência até os dias atuais.
VOCÊ CHEGOU ATÉ AQUI, QUE TAL CONSIDERAR SER NOSSO APOIADOR?
Jornalismo de qualidade tem preço, mas não pode ter limitações. Diferente de outros veículos, nosso conteúdo está disponível para leitura gratuita e sem restrições. Fazemos isso porque acreditamos que a informação deva ser livre.
Para continuar a existir, Escotilha precisa do seu incentivo através de nossa campanha de financiamento via assinatura recorrente. Você pode contribuir a partir de R$ 8,00 mensais. Toda contribuição, grande ou pequena, potencializa e ajuda a manter nosso jornalismo.
Se preferir, faça uma contribuição pontual através de nosso PIX: pix@escotilha.com.br. Você pode fazer uma contribuição de qualquer valor – uma forma rápida e simples de demonstrar seu apoio ao nosso trabalho. Impulsione o trabalho de quem impulsiona a cultura. Muito obrigado.