Modo de preparo:
Raspe os pelos, corte as pernas acima do joelho e os braços próximos ao tronco. Com esses pedaços em mãos, corra pela tribo gritando e cantando. Tape o ânus dele com um pau e asse. Distribua a refeição entre os convidados, deixando a cabeça e os miúdos para as mulheres e crianças, que deverão comê-los com uma sopa.
Assim era a preparação da carne humana nos rituais antropofágicos das tribos brasileiras. Possivelmente foi assim que o primeiro bispo do Brasil, o Bispo Sardinha, foi deglutido, episódio evocado por Oswald de Andrade no Manifesto Antropófago, que serviu de base para que o poeta Sérgio Vaz escrevesse o Manifesto da Antropofagia Periférica.
O texto publicado na edição número um da Revista de Antropofagia em 1928 tinha como objetivo definir os parâmetros antropofágicos da cultura brasileira, que deveria se apropriar dos bens culturais portugueses e europeus para então criar uma expressão legitimamente nacional.
A declaração promovia ainda uma crítica ao capitalismo, embora o movimento modernista de 22 só tenha se tornado possível graças a ele, uma vez que foi a aristocracia paulistana a sua grande patrocinadora e sendo o dinheiro e as influências dela as chaves para abrir as portas do Teatro Municipal para a realização da Semana de Arte Moderna, um dos mais importantes eventos culturais brasileiros, realizado em um espaço público, mas no qual apenas uma elite tinha acesso.
Essa alta sociedade foi também a responsável por dar a São Paulo o solo fértil para o florescimento do modernismo brasileiro, plantando ali o dinheiro necessário para investir na cultura e sendo adubado com o então provincianismo e uma nascente industrialização.
Assim, apedrejando a mão vil que afagava, o manifesto cumpria a principal função do modernismo brasileiro: a destruição.
Essa foi a característica dada por Mário de Andrade na conferência “O Movimento Modernista”, balanço feito por ele em uma palestra a estudantes em 1942, passados vinte anos da famosa semana.
Com uma distância de tempo ainda maior, em 2007 o escritor Sérgio Vaz fez justamente aquilo que Oswald apregoava e se alimentou do Manifesto Antropófago para criar a base da Semana de Arte Moderna da Periferia, evento que diferentemente do anterior não teve o apoio direto da aristocracia e não foi feito para a elite.
‘Gente que sequer tinha ido ao teatro ou assistido um espetáculo de dança teve esta oportunidade, sem que tivesse sido abençoado pela mão do governo. Arte de graça, dada pelo próprio povo, em troca de luz, do brilho da auto-estima’ – Cooperifa – Antropofagia Periférica (2008)
E se o capitalismo já era condenado pelo modernista, para o poeta da periferia que convive diretamente com o resultado abominável dele a condenação é maior ainda ao dizer que “A arte que liberta não pode vir da mão que escraviza”.
Por isso, enquanto o documento anterior diz que “Só a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente”, no atual “A periferia nos une pelo amor, pela dor e pela cor”.
A população unida por esses fatores é aquela que, mesmo homenageando o pretérito, está contra ele e quer reescrevê-lo (“surge das ladeiras um povo lindo e inteligente galopando contra o passado. A favor de um futuro limpo, para todos os brasileiros”), sem questionamentos como o tradicional “Tupy or not tupy” e sabendo o que quer, sendo a favor “do teatro que não vem do ‘ter ou não ter…’”.
E se o documento feito há 88 anos clamava por uma consciência participante, a mesma foi evocada no século XXI declarando que “é preciso sugar da arte um novo tipo de artista: o artista cidadão. Aquele que na sua arte não revoluciona o mundo, mas também não compactua com a mediocridade que imbeciliza um povo desprovido de oportunidades. Um Artista a serviço da comunidade, do país, que armado da verdade, por si só, exercita a revolução”.
Assim, chegando com os dois pés no peito e na porta que foi realizado de 04 a 10 de novembro de 2007 na periferia da zona sul de São Paulo o evento que contou com a participação de centenas de artistas e foi assistido por milhares de pessoas.
Mas, além disso, o resultado contado no livro Cooperifa – Antropofagia Periférica (2008) é muito maior: “gente que sequer tinha ido ao teatro ou assistido um espetáculo de dança teve esta oportunidade, sem que tivesse sido abençoado pela mão do governo. Arte de graça, dada pelo próprio povo, em troca de luz, do brilho da auto-estima”.
Esse papel desempenhado por Vaz e pela Cooperifa é o que se configura como a atualização da inteligência artística, ponto defendido por Mário de Andrade como um dos princípios do modernismo ao lado do direito à pesquisa estética e da estabilização de uma consciência nacional. E foi nesse quesito que o autor de Macunaíma fez um mea culpa do movimento de 22, colocando-o como algo a não ser seguido por ninguém justamente por não ter tido um caráter engajado, papel segundo ele cumprido com mais força pela geração de 30. Para Vaz, então, Mário se vivo daria um enorme “viva!”.