A apropriação cultural pode ser considerada positiva ou negativa? Aliás, a apropriação cultural pode ser positiva?
Para o professor Doutor em História Social, Leandro Karnal, sim. Ao tratar do assunto em sua coluna “Careca de Saber“, na Rádio BandNews, ele diz que, uma vez usada com respeito à cultura do outro, é possível que ela se dê de maneira construtiva: “Se você não está pretendendo ridicularizar outra cultura, se você não quer destruir a identidade do outro, se o seu hábito de apropriação cultural é uma homenagem ou simplesmente uma identidade, não há problema. Utilize com respeito, porque todas as sociedades constituem-se na soma, sobreposição e muitas outras formas de apropriação cultural”.
Mas, não é sempre que isso ocorre. Segundo a historiadora Suzane Jardim, o distúrbio está no fato de aquilo que caracteriza uma cultura ser ridicularizado, menosprezado e discriminado pela classe dominante, que posteriormente se apodera, retira isso do seu contexto original e dá novos contornos para que se torne um produto de mercado.
Essa é a questão que se coloca em Saving Banksy. Disponível na Netflix desde o último dia 02, o documentário trata do fato de muitos escritores de graffiti produzirem de maneira marginalizada, se escondendo da polícia e sujeitos a serem esfaqueados ou baleados, como aconteceu de fato com Risk, um dos entrevistados para o audiovisual. No entanto, com todos os riscos para levar seus riscos, sua estética e sua mensagem para a cidade, alguns trabalhos são usurpados e vendidos em leilões de arte.
Retirados do espaço público e levados para o privado, os graffitis de Banksy, o artista de rua mais famoso do mundo, são os mais valiosos. A discussão em torno de um deles é o que propõe o filme dirigido por Colin Day.
Lançado em janeiro deste ano nos Estados Unidos, o audiovisual dá atenção especial à passagem do graffiti writer por São Francisco, onde deixou muitas das suas obras. Contudo, a política da cidade no combate à arte urbana previa que os proprietários dos imóveis fossem os responsáveis por pintar suas próprias paredes, caso contrário, receberiam multas junto aos impostos imobiliários.
Assim, as obras de Banksy estavam fadadas a ter vida curta. Mas uma delas poderia ser salva (daí o nome do documentário). A pintura de aproximadamente 1,80m estava na lateral de um prédio e trazia a figura de um rato, imagem icônica do pintor.
A razão para que utilize constantemente a figura do roedor é explicada pelas palavras do próprio Banksy, expostas no documentário de maneira escrita, uma vez que, naturalmente, a produção não conseguiu o entrevistar, já que sua identidade é mantida em segredo. Assim ele dá sentido para o uso do símbolo: “Se você for sujo, insignificante e desprezado, os ratos serão seu principal modelo”.
‘Quando você vai a um museu, você é um simples turista olhando a sala de troféus de alguns milionários.’ – Banksy
O desenho do mamífero, no entanto, não sofreu desdém, já que o colecionador de arte Brian Greif passou longos e intensos meses negociando com a proprietária do imóvel para tentar fazer a remoção sem apagar o desenho.
Esse trabalho minucioso tinha o intuito de manter viva a representação e fazer com que pudesse ser vista por cada vez mais pessoas. Dessa forma, a pintura foi oferecida gratuitamente para o Museu de Arte Moderna de São Francisco, que recusou a oferta.
Nesse ponto, outra frase de Banksy dialoga com a situação, mostrando que o documentário encontrou uma alternativa para ter as suas palavras mesmo com a sua ausência. “Quando você vai a um museu, você é um simples turista olhando a sala de troféus de alguns milionários”.
E é justamente quando um desses endinheirados aparece que se dá a tensão do filme. Stephan Keszler, a principal pessoa a se apropriar e negociar as obras de Banksy, oferece espaço em uma exposição em Miami.
Depois da mostra, no entanto, a especulação de Keszler só cresce, chegando a oferecer meio milhão de dólares. Greif se recusa, mesmo que tenha recebido uma oferta ainda maior (US$ 7.000) vinda de um colecionador.
Mas, ainda que o posicionamento de Greif seja admirável, a discussão gerada pelo vídeo é ainda mais. Para isso, ele conta com entrevistas de moradores locais, do fotógrafo Glen E. Friedman e diversos artistas de rua. Entre eles, o pioneiro do stencil, Blek Le Rat, Revok, Anthony Lister, Hera, Doze Green, Niels “Shoe” Meulman, o já citado Risk e Ben Eine, que esteve ao lado de Banksy quando foi até a Palestina com a intensão de levar mensagens positivas e críticas para uma região de conflito por meio de pinturas que depois foram parar em Miami pelas mãos de Keszler.
Esse comportamento egoísta é duramente criticado, uma vez que aquilo que foi pensado e criado para estar na rua acaba sendo totalmente desviado do seu intuito e se torna mercadoria.
Sobre esse assunto são usados os dizeres de um irônico Banksy: “Não podemos fazer nada para mudar o mundo até que o capitalismo desmorone. Até lá, devemos ir às compras para nos consolar”.
Mas, ainda que essa forma de apropriação cultural faça com que a arte urbana se torne peça de colecionador, há quem resista, como é o caso de Greif, que mantém a pintura restaurada e protegida em um depósito particular de arte em São Francisco, cidade que posteriormente extinguiu a multa aos proprietários e que mantém intacto apenas um trabalho do artista.
Enquanto isso, quando não está na sua toca, o rato continua circulando, passando por diversos museus do mundo, contanto que sigam o critério estabelecido pelo colecionador: que sejam abertas ao público e promovam o valor do graffiti.
Assim, podemos reconhecer no documentário duas distintas maneiras de apropriação cultural, uma positiva, adotada por Greif e que se alinha com o que propõe Karnal, e outra negativa, figurada por Keszler e que se encaixa no que aponta Suzane Jardim.