Em A Câmara Clara, o escritor francês Roland Barthes propõe que as fotografias são registros de luz que são construídos como representações da vida diária. O que aparece nas superfícies das fotos são visualidades mundanas, abertas a interpretações por diferentes espectadores. Sem conhecer os referentes, uma foto de família se torna apenas uma foto de pessoas.
O cineasta paraibano Ramon Porto Mota há alguns meses vem descrevendo seu novo filme, A Noite Amarela (2019), como um slasher espiritual. A explicação estaria no fato de que seus personagens, adolescentes que estão concluindo o ensino médio, são imagens de corpos que perdem a essência durante uma viagem a uma ilha deserta para a casa da avó de uma das meninas do grupo.
Há uma implicação, em um dado momento do filme, de que esse desencontro entre o que se vê dos sujeitos que aparecem na tela e suas próprias almas é fruto de uma experiência quântica de um dos antigos dono da casa em que os jovens se hospedam. Tal experimento envolveria a criação de imagens, que abririam portas para novas realidades a serem interpretadas pelo cientista – que tem dificuldades em definir o que é a vida diária e esse novo mundo visual.
A Noite Amarela fala desse esvaziamento de sentido da imagem. É uma narrativa que mostra o que aconteceria se ‘o nada’ efetivamente tivesse vencido no fim de A História Sem Fim (1984).
Para mim, o filme todo é como um pesadelo protagonizado por vestígios de luz que deixamos nas imagens. Trata-se de uma narrativa que dá vida a um retrato de uma família desconhecida apenas para perceber que aquelas pessoas não possuem sentido familiar algum sem seus referentes mundanos. Os adolescentes criados por Mota literalmente se perdem entre a luz a sombra, entre o jogo de cores e a memória – sem noção de tempo ou espaço.
Em um certo momento de A Câmara Clara, Barthes diz ao leitor que teve dificuldades de encontrar a própria mãe, que havia acabado de falecer, nos álbuns de família. A mulher que aparecia nas fotos era sempre alguém diferente daquela que ele conhecera. Quando finalmente a encontrou, em um retrato da juventude dela, percebeu que aquela era apenas um rastro de sua passagem, uma forma sem vida criada por um processo químico para representar alguém que já se fora.
A Noite Amarela fala desse esvaziamento de sentido da imagem. É uma narrativa que mostra o que aconteceria se ‘o nada’ efetivamente tivesse vencido no fim de A História Sem Fim (1984). Sem o devido contexto, as nossas representações imagéticas são apenas visualidades ocas, que aparecem para pessoas que não sabem dizer com precisão o é que está diante de seus olhos.
É possível argumentar que o filme é experimental e complexo demais para ser chamado de horror. Por outro lado, não deixa de ser muito assustador perceber que tudo o que criamos para deixarmos nossa marca no mundo vai se tornar signos que ninguém será capaz de interpretar quando deixarmos de existir.