Quando cursava o doutorado no programa de Multimeios, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), a pesquisadora Laura Loguercio Cánepa decidiu adiantar em um ano a defesa de sua tese sobre a história do cinema de horror no Brasil. Isso porque naquele mesmo ano, em 2008, chegaria aos cinemas o novo filme de José Mojica Marins, o Zé do Caixão. Ela imaginava que Encarnação do Demônio (2008) deveria mudar as regras do gênero no país, o que afetaria seu próprio trabalho.
O filme de Mojica acabou não se tornando um sucesso, mas a previsão da pesquisadora se mostrou bastante acertada. Uma década depois, o cinema de horror no Brasil está mais forte do que nunca. Sua tese, “Medo de que?: uma história do horror nos filmes brasileiros”, se tornou uma referência fundamental para quem vai pesquisar o gênero no país. “Hoje eu quase digo que escrevi a pré-história do nosso cinema de horror”, brinca.
Laura, que é docente na Universidade Anhembi Morumbi, se manteve na ativa desde então. Em artigos, investigou formatos como os found footages e debateu o cinema popular e espírita no país. Em 2017, organizou um livro que analisa a obra de Tim Burton, lançado pela editora Estronho. Atualmente, está em Leeds, no Reino Unido, onde desenvolve uma pesquisa sobre cineasta Rafaelle Rossi, um dos grandes expoentes das pornochanchadas. O trabalho é feito sob a tutela da professora Stephanie Dennison.
A pesquisadora concedeu uma entrevista exclusiva à Escotilha, na qual discutiu o legado de sua tese, seus interesses acadêmicos e o novo momento pelo qual passa o cinema de horror brasileiro. Confira abaixo:
Escotilha » O que você está pesquisando na Inglaterra?
Laura Cánepa » Eu e a professora Stephanie Dennison estamos desenvolvendo uma pesquisa sobre a redescoberta do Rafaelle Rossi com o livro Coisas Eróticas e a exibição de seus filmes no Canal Brasil. Estamos pensando nele como a figura de um Ed Wood brasileiro, um negativo do Mojica. Aqui em Leeds eu tô trabalhando com a ideia de o que significa ter um filme ruim no Brasil, que já tem uma cinematografia vista como precária e problemática. O que é um mau filme para os nossos padrões?
E por que o Rafaelle Rossi?
Rafaelle Rossi é uma figura bem interessante, até por ter ficado milionário e, no final da vida, ter perdido tudo. Estamos tentando fazer um texto que seja justo com ele, ao mesmo tempo que não transforme filmes bastante problemáticos em obras primas. Não queremos inventar falsos gênios. Não é essa a ideia.
As pessoas fizeram críticas terríveis ao nosso grupo de pesquisadores, dizendo que éramos caça-fantasmas do cinema brasileiro. Algum tempo depois, essas mesmas pessoas estavam dando palestras e fazendo mostras em diversas regiões do país mencionando a minha tese e assumindo que certos filmes eram de horror.
Como você avalia o legado da sua tese?
Não sei se sou a melhor pessoa para avaliar isso [risos]. Em primeiro lugar, revi algumas afirmações que fiz. Várias bolas que levantei durante a tese, eu bati depois em artigos posteriores, sem a mesma inserção da tese, que é muito mais citada. Isso me deixa chateada e preocupada. Acabam-se repetindo algumas coisas que não defendo mais, com generalizações e inclusões ou exclusões de filmes.
Gosto bastante de uma discussão que faz sobre O Jovem Tataravô (1936) como um ancestral antigo do horror brasileiro…
Essa se tornou uma discussão bizantina. Nunca dissemos que esse era um filme de terror. Sequer que é uma comédia de terror. Só apontamos que é um repertório que aparecia de maneira incipiente naquele filme e que parece ser uma produção informada de algumas coisas que se fazia na Universal naquele período. Recebemos diversas críticas por afirmar que O Jovem Tataravô era o primeiro filme de terror brasileiro, mas isso nunca foi dito na minha tese ou em textos de colegas que li.
Ao mesmo tempo, parece-me que seu trabalho ajudou a rever parte da historiografia de gênero no país.
As pessoas fizeram críticas terríveis ao nosso grupo de pesquisadores, formado também pelo Lucio Reis e pelo Carlos Primati, dizendo que éramos caça-fantasmas do cinema brasileiro. Algum tempo depois, essas mesmas pessoas estavam dando palestras e fazendo mostras em diversas regiões do país mencionando a minha tese e assumindo que certos filmes eram de horror. Isso me diverte e sei que diverte muito ao Primati e ao Lucio também. Nossa insistência em argumentar que existe um repertório de horror consistente no cinema nacional de fato teve alguma ressonância cultural entre realizadores, pesquisadores e jornalistas.
Você enfrentou muito preconceito na academia por ser uma pesquisadora de horror?
Agora estou num país considerado o paraíso para quem pesquisa terror, onde tem no mínimo dois congressos por mês, e há preconceito. Esse preconceito com o horror é mundial. Também acontece com o pornô e a comédia física. Gêneros que têm apelos corporais fortes são vistos como coisas não muito nobres. Isso faz parte da graça de estudar esses temas meio chocantes. Mas minha entrada nunca foi barrada nas universidades. Sempre tive professores especializados e muito generosos. O que me parece é que quem chega em busca de interlocução, no geral, é bem recebido. Afinal, você está trazendo um tema novo para dentro da academia.
E como você avalia esse novo momento do gênero no país?
O horror brasileiro vive seu maior momento hoje, com uma grande variedade de inserções e talvez maior valorização dentro da crítica. O público ainda tem uma relação estranha com o cinema brasileiro, com uma preferência maior por comédias e, às vezes, pelo cinema policial. Mas em termos de criatividade e de liberdade, o horror nacional talvez esteja no seu melhor momento. Inclusive com interesse estrangeiro nos filmes que são produzidos no Brasil. Isso é uma grande novidade.
Gosto muito da sua pesquisa sobre os filmes espíritas…
Esse é um tema que acabou se revelando paralelo porque o repertório do espiritismo é muito ligado às histórias de assombração. É um universo muito interessante. No Brasil, o espiritismo é muito forte. Mas, de forma geral, os filmes espíritas brasileiros não me parecem grandes filmes. Esse é um desafio a ser enfrentados. Mesmo Chico Xavier (2010) e o Nosso Lar (2010), que foram grandes produções recentes, não foram tão interessantes cinematograficamente quanto poderiam.
Acho Joelma 23º Andar (1979) bastante curioso…
Esse é um filme maldito do ponto de vista moral. Isso porque usa algumas imagens reais de mortes que jamais poderiam ter sido autorizados por falta de tempo. É um filme assombrado por um problema ético, mas muito revelador do tipo de cinema e do tipo de pensamento que se tinha no Brasil naquele momento. Joelma é um filme para se pensar. Acho que essa é uma das primeiras questões que a pesquisa sobre o horror brasileiro abre: como entender um filme problemático desses? Essa é uma pesquisa que eu adoraria ler.
![Capa do livro organizado por Laura Loguercio Cánepa Capa do livro organizado por Laura Loguercio Cánepa](http://www.aescotilha.com.br/wp-content/uploads/2019/04/tim-burton-livro-estronho-laura-cánepa-207x300.jpg)
E o seu livro do Tim Burton?
Esse foi um trabalho de encomenda da editora Estronho, que surgiu de uma conversa minha com o editor, Marcelo Amado, em função da mostra do Tim Burton no Museu da Imagem do do Som, em São Paulo. A princípio ele tinha me perguntado sobre a minha dissertação, mas comentei que meu mestrado tinha sido concluído em 2002 e que achava um absurdo lançar um trabalho tão desatualizado. Então propus convocar outras pessoas interessadas na obra do cineasta para montar um livro super variado e livre sobre os filmes dele, com diferentes abordagens de diferentes pesquisadores. Achei que o resultado ficou muito legal e bonito, semelhante a obras que vemos sobre o cineasta na França, na Inglaterra e nos Estados Unidos.
Quais os caminhos para as pesquisas de horror no Brasil hoje?
Das questões que levantei na minha tese e acho que mereceriam um olhar mais dedicado estão o cinema marginal e underground de horror, o que foi feito com o gênero em super 8 e o proto-cinema gótico nacional dos anos 1950, entre outros. Há também muita coisa para ser levantada sobre o Mojica, sobre a obra do Walter Hugo Khouri e do Ivan Cardoso. Eu diria que está tudo por fazer ainda. Escrevi isso na introdução da minha tese e continuo repetindo. O tema continua. Eu ficaria curiosíssima para ver novas teses sobre o horror brasileiro, inclusive, atacando e questionando tudo que falei. É assim que o pensamento caminha.