É meio um clichê de qualquer pessoa com mais de 30 anos: “quando eu era criança, a gente brincava na rua, brincava lá fora, hoje em dia as crianças só ficam dentro de casa”. É muito mais que um saudosismo. Já é um problema de cunho social e ambiental: as crianças têm cada vez menos contato com a natureza, têm cada vez menos liberdade, acessam o mundo quase que exclusivamente pelas telas e estão duramente institucionalizadas.
É desta privação de liberdade e dos efeitos nocivos dela que trata a segunda parte do documentário O Começo da Vida 2 – Lá Fora, lançado mundialmente nesta semana e disponível na Netflix. Uma produção da Farinha Filmes que continua as discussões do primeiro documentário da série. No O Começo da Vida 1 (que esta coluna já tratou aqui), a narrativa gira em torno da primeira infância ao redor do mundo, traz evidências científicas da importância desse período da vida e dos reflexos dele na vida adulta.
A continuação da discussão, gravada antes da pandemia, fala de um problema que se potencializou profundamente neste ano: as crianças passam a maior parte do tempo em lugares fechados, não têm experiências livres com a natureza ou com o outro, brincam apenas com eletrônicos e têm tempo reduzido para brincar livremente, pois estão imbuídas de muitas tarefas e atividades.
Se em 2018 e 2019, durante a produção do filme, a falta de contato entre crianças e natureza já era um problema, em 2020 vimos os efeitos claros deste problema. Isoladas por causa da pandemia de Covid-19, muitas crianças tiveram (e estão lidando com) problemas psicológicos, de convívio e de aprendizado. Convivendo apenas com pouco adultos, as crianças perdem pois só se desenvolvem na interação.
As limitações às quais as crianças são impostas hoje já superam os benefícios do acesso à educação ou cultura, outrora vantagens da urbanização.
O argumento das famílias e dos entrevistadores é o efeito dessa infância presa no entendimento de si mesmo, do mundo e da natureza, afinal, as crianças se mexem menos, se exercitam menos, não reconhecem a natureza como um lugar do qual elas gostam e também não se interessam em protege-la.
As cidades, cada vez mais verticalizadas, urbanizadas, cimentadas e privatizadas não oferecem espaços públicos para o desfrute do tempo livre em família. Não há suficientes praças ou parques para que as famílias desfrutem; o consumismo é premente numa sociedade violenta e poluída.
As limitações às quais as crianças são impostas hoje já superam os benefícios do acesso à educação ou cultura, outrora vantagens da urbanização.
Assim como na primeira edição do documentário, a produção percorre vários países e entrevista diversos especialistas em educação que assinalam: é urgente retomar o convívio intenso com a natureza para que a formação das crianças seja integral.
Muito mais que o saudosismo, de voltar ao passado, mas que garantir o futuro da humanidade. Em um mundo tão adulto e institucional, a infância e as possibilidades que ela traz são centrais e elementares para um futuro viável.