O descortinar de novos conhecimentos com a chegada de um filho não se resume a como trocar fraldas (falo por mim; eu não sabia até ter meu próprio bebê). Nem gastos extraordinários com o enxoval. Por trás do consumo de um item, a princípio, comprado apenas para auxiliar nas tarefas maternas, há um universo. De repente, você se vê transportado para as tribos ancestrais na África ou se enxerga em um longínquo país asiático. Não é porque os filhos desfazem seu pleno funcionamento das faculdades mentais, mas porque você está a descobrir uma boa forma de carregá-lo e aí mergulha no mundo do babywearing.
WTF!? O termo diz respeito a uma tradição milenar, que não pode ser datada nem ter seus inventores nominados. Babywearing quer dizer carregar seu filhote com o auxílio de tecido ou cestos, para mantê-lo protegido, perto da mãe, ou seja, a principal fonte de calor e alimento do pequeno e indefeso ser.
As diversas técnicas de babywearing ganharam força a status comercial a partir do anos 1980 nos EUA e, por conseguinte, em diversos países ocidentais. Porém, dizem respeito a uma extensa gama de mulheres e povos que nada tinham a ver com consumo, moda ou workshops caríssimos.
Pais e cuidadores de bebês “vestem” há centenas de anos suas crias nas tribos indígenas da América Central, na Tailândia, no Peru. No Laos, na África do Sul. Na China ou no País de Gales. Na Guatemala, nas Coreias ou em algum país do norte europeu. E são vários nomes e tipos de carregadores: kanga africana, kitenge, kepina, mei tai, sling, wrap, pouch, capulana, canguru, cradleboard, mochila, onbuhimo. Mas não é preciso nenhum aparato tecnológico. Um bom lençol ou lenço também serve.
Desde antes do tempo das cavernas, afinal – e principalmente –, em uma cultura nômade, era necessário carregar os filhos de forma prática, ergonômica (embora o palavreado mais empolado seja invenção da nossa sociedade) e que deixassem braços e mãos livres, a fim de facilitar a realização das tarefas cotidianas. Atualmente, sabe-se que levar os filhos amarrados consigo acalma as criaturas e diminui cólicas e outros desconfortos do trauma do nascer. E se, nos tempos imemoriais, permitia que a mãe sobrevivesse à selva, agora permite que as mães cantem e dancem, saracoteiem por aí, assistam shows e filmes.
Carregar o bebê junto ao seu corpo é instintivo, primitivo, milenar e, ao mesmo tempo, faz parte do nosso cotidiano. É como carregar, além do bebê, um museu junto de mim.
Um pouco de reflexão sobre o peso cultural presente no pano levinho que uso para carregar minha filha é suficiente para sentir a grandeza do mundo, da vida em sociedade, de como os jeitos e maneiras caminham de geração em geração. Carregar o bebê junto ao seu corpo é instintivo, primitivo, milenar e, ao mesmo tempo, faz parte do nosso cotidiano. É como carregar, além do bebê, um museu junto de mim.
Carregar e ajudar
O costume ancestral da maternidade de levar os filhos a tiracolo sem assoberbar a coluna e os braços mostra que não é só de individualismos que estamos cercados. Se, antigamente, as mulheres contavam com uma rede de apoio entre suas parentes e vizinhas, hoje em dia é a produção e distribuição de conteúdo pela internet que retroalimenta a cultura do bem carregar.
Há grupos nas redes sociais, canais de vídeo (aqui e aqui, por exemplo), textos em blogs e páginas. Uma simples busca mostra o quanto se tem a dizer e aprender sobre o assunto. Pessoas desconhecidas se ajudam, conversam, trocam carregadores, emprestam seus pertences a outras que acabaram de conhecer. Em questão de minutos, uma comunidade se mobiliza pelo melhor jeito de carregar um bebê amarrado ao cuidador e parece que ninguém mede esforços para fazer o que for melhor. Atribuo esse reconhecimento instantâneo e apoio mútuo à história e a carga cultural de milhares de anos que se evidenciam no simples ato de usar tecido para carregar uma criança.
Usamos a internet e o cartão de crédito para comprar; a aquisição envolveu o contato com a indústria têxtil; a compra veio pelo sistema de transporte convencional e o pacote gerou resíduo não reciclável. Tudo como manda o figurino do capitalismo. Mas, ao vestir o pano de carregar, minha alma ou algo no âmago do meu ser reencontrou a de milhares de mães que – minhas ancestrais – usaram os panos antes de mim, em muitos lugares. Estou em cada uma delas e cada uma delas está em mim. Isso que é cultura?
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