A Sincheng é uma lanchonete comandada por uma família de coreanos na cidade de Curitiba. Localizada na esquina da Rua Treze de Maio com a Rua Barão do Serro Azul, o local, fundado em 1994, tornou-se um ponto frequente para roqueiros, artistas, andarilhos e demais personagens do cotidiano curitibano. Durante meses, passava de segunda a sexta por aquele trecho e me chamava a atenção como vivia cheio.
Como a mim pouco importa se repleto de “gente do bem” ou “gente do mal”, e movido pela necessidade de renovar meus causos, adentrei o estabelecimento na última quarta-feira. Em São Paulo, onde não nasci mas fui criado, locais como a Sincheng (ou Singheng como na ficha do alvará pendurado ao lado do caixa) possuem os mais diversos apelidos. “Curva de rio”, “boca de porco”, “risca a faca” e “ranca toco” são apenas algumas das pouco elogiosas formas de se referir a algum estabelecimento que fuja ao conceito do “socialmente aceitável”, seja lá o que isso significar.
Notei obviamente que minha presença causava estranheza e desconfiança. Talvez se soubessem que em sendo goiano e (orgulhosamente) filho de um boliviano, meu perfil, de alguma forma, se encaixava no “à margem” de seus frequentadores, os olhares fossem mais promissores.
“Gabo não parecia fazer muita questão de ser simpático, dizia apenas que havia aprendido que na vida nos fazemos duros à força ou na base de enxadadas.”
Sentei numa dessas mesas de dois lugares, ao estilo antigo dos restaurantes McDonald’s, e fiz o que sempre faço ao entrar pela primeira vez em um lugar: passei a observar cada detalhe da lanchonete e pastelaria. Dois ventiladores na parede, algumas placas de marcas de refigerante penduradas e o chão mais limpo que muito bar no Batel e São Francisco.
Entretido que estava em minha observação, demorei a notar o olhar atravessado de um homem, estatura mediana, alguns poucos pêlos no bigode e camiseta branca com os dizeres “I’m here, bitch” que falava comigo em tom acelerado, muito alto e rapidamente. Como me peca a fluência em coreano, interpretei como sendo um convite à consumir algo em seu estabelecimento.
Lembrei da época em que trabalhava para uma empresa administradora de cartões na cidade de Campinas, interior de São Paulo. Me tocava a região central da cidade, ocupada por muitos estabelecimentos comerciais administrados por chineses, viatnamitas e coreanos.
Sempre que entrava no comércio, dificilmente falavam português comigo. Uma funcionária de um desses estabelecimentos, certa vez me contou que muitos faziam isso como forma de evitar cobranças e/ou fiscalizações. Enfim, imaginei que fosse essa a razão do atendente da Sincheng.
Pedi então uma cerveja (que por motivos óbvios de “não estou sendo pago” não direi o nome), ciente que mesmo sendo pouco mais de meio-dia, ninguém ali estranharia meu pedido. Nada do cardápio me apeteceu, logo, fiquei apenas na gelada. Não que os pastéis não estivessem divinamente cheirosos e convidativos, mas havia uma relação direta entre o tamanho de minha fome e a quantidade de óleo que pingava do dito pastel de queijo.
Sentado ali, vendo o movimento dos carros, ônibus e motocicletas que circulavam, eis que vejo um rapaz, de colete e bermuda jeans, mochila preta e cabelo espetado entrando na lanchonete. Escolheu a bancada próxima ao caixa como seu lugar. Pensei, naquele momento, o porquê de não ter feito o mesmo. Enfim. Cinco minutos depois, sentou ao seu lado um outro rapaz, que para a narrativa só interessa saber que lá estava.
Não tardou até que iniciassem um diálogo como se fossem velhos amigos, não sem antes brindarem com um bate copos que, logicamente, fez voar cerveja para todos os lados. Curioso que sou, e movido pela conversa em voz alta da dupla, passei a conhecer um pouco mais da história do rapaz de cabelo espetado.
Seu nome era Matías, mas gostava de ser chamado por Gabo, como o escritor. Com 28 anos de idade, já há dois vagava pelo Sul brasileiro em busca de viver de arte. Artista circense, narrava ao colega de copo a difícil história de sua juventude em Mendoza, cidade próxima da Cordilheira dos Andes e famosa pela produção de vinhos e azeites.
Gabo não parecia fazer muita questão de ser simpático. Dizia apenas que havia aprendido que na vida nos fazemos duros à força ou na base de enxadadas. Também aproveitou o tempo de sua cerveja para, segundo ele, dar uma lição valiosa ao rapaz que lhe ouvia sobre gana, não o país, mas sim um grande desejo de realizar algo.
Para Gabo, ter gana na vida e da vida é como respirar, parte inerente do ser humano, mas infelizmente condicionada a ser um reflexo quase esquecido de nossa existência. De imediato, o rapaz ao seu lado contra-argumentou que ninguém deixava de respirar, no que sabiamente Matías respondeu: “mas só lembramos disso quando a alma nos sufoca”.
Assustado com a sabedoria do menino de Mendoza, fiz só o que o momento me permitiu. Paguei a conta e fui embora. Tinha a certeza de que passaria os próximos dias investigando o que me sufocava a alma.